- Diante deste quadro, você não pode se queixar se alguém a chamar de "arrombada".
- É grave doutor? - quis saber, num tom choroso, a moça tentando olhar o médico, por cima o lençol que lhe cobria as pernas suspensas e abertas.
- Há lesões no esfíncter... Vasos rompidos... Lacerações no reto. Você terá muita sorte se não houver infecções.
- Nossa... Que tristeza!
- Como aconteceu isso. Foi estupro?
- Não. Eu que deixei. No começo eu disse que não queria, mas ele insistiu muito daí eu permiti.
- Ele foi violento. Machucou bastante.
- Nunca mais eu faço isso.
- Olha, vou usar medicação tópica. Vou receitar anti-inflamatórios e analgésicos. A dieta, durante os próximos 30 dias será de líquidos, sopas, compreendeu?
- Ai que dor. Sim, senhor - respondeu a paciente levantando-se da maca.
Depois de vestida, a moça, sentindo frio, sentou-se delicadamente na cadeira defronte à mesa do doutor aguardando as receitas. Ela usava um lenço de papel para retirar os últimos traços da maquiagem.
Ao sair, passando pela secretária, pagou a consulta, discando logo em seguida, pelo celular, para um taxi.
Defronte ao seu prédio, e ao descer, ela encontrou-se com uma amiga que vinha pela rua.
Meire carregando sacolas plásticas cheias - uma em cada mão - alegrou-se ao perceber a presença da moça, mas achou que ela estava muito magra.
- Luisa, que satisfação em ver você. Há quanto tempo querida... Me dá aqui um abraço.
- Oi Meire. Estou um pouco doente. Acabo de vir do médico.
- O que aconteceu? Gripe?
- Nada, querida. Vamos entrar que eu te conto.
As duas amigas entraram no edifício, passaram pelo porteiro cumprimentando-o, e tomaram o elevador.
Luisa procurou na bolsa as chaves do apartamento, abrindo a porta. Ao entrarem um aroma de incenso que impregnava o ar impressionou Meire.
- Hum... Já vi tudo. Ele esteve aqui?
- Veio no sábado, foi embora ontem. Trouxe vinho, caviar e aquela conversa de sempre.
- Foi aquela maior farra.
- Como sempre. Mas no sábado a noite quis inovar. E eu deixei.
- Inovar? Como assim, querida?
- Ele quis botar atrás, sabe?
- E você deixou, sua tonta?
- Eu já estava grogue. Ele passou vaselina e mandou relaxar.
- E daí?
- Foi bruto.
- O sistema era bruto? - brincou Meire gargalhando.
- Me machucou muito, mas muito mesmo. Não sei se vou poder fazer cocô. O médico mandou tomar só sopa, durante uns 30 dias.
- Bem feito, sua idiota. Onde já se viu deixar entrar por onde tudo sai? Já imaginou enfiar o bico da bomba de gasolina no escapamento dos carros?
- Não ria. Não brinque com a minha dor. Não consigo nem sentar direito.
- Isso é pra você aprender. Mas e daí? Rendeu mais alguma coisa?
- Ele jogou um pacote de dólares no canto do quarto e mandou que eu tirasse o que quisesse.
- E você tirou?
- É claro, lindinha. Como você acha que vou pagar a próxima viagem pro Japão?
- Ainda bem. A dor logo passa. As viagens são inesquecíveis. Vale a pena.
- Foi rendoso, mas não sei se vai durar muito. Ele reclamou, de novo da mulher. Sabe a outra mulher, essa nova, a mais recente? Disse que ela já desconfia de alguma coisa.
- Mas sobre o apartamento não há dúvida nenhuma, né?
- Sobre o apartamento, não. Todo mundo sabe que foi a minha mãe que me deu. Na verdade ele me disse, numa ocasião, que estava com medo dessas operações da polícia federal contra a corrupção. Ele acha que podem pensar que os prêmios que ele dá na TV tem origem nos desvios das verbas e superfaturamentos nas obras públicas.
- Vai ver tem mesmo, né querida?
- Eu também desconfio, mas não quero nem pensar nisso.
- Então está bom. Te cuida, neném. Olha, quando estiver no Japão me manda lembranças tá?
- É claro, querida.
Meire saiu do apartamento e já na rua, sentindo o vento frio no rosto, imaginou quantas feridas anais financiariam viagens pelo mundo.
Na sala de aulas lotada com alunos de sete anos.
Zezinho levanta o dedinho indicador, da mão direita, e pergunta para a professora, que escrevia na lousa, o texto que copiava de um livro.
Zezinho: Dona, existe o verbo miar?
Professora: (arregalando os olhos azuis, fitando-o por cima dos óculos) Imagina, menino. Quem mia é gato. Que arte é essa? Já pensou em conjugar o verbo miar?
Zezinho: É verdade que a vaca muge?
Professora (irritada) É verdade. Mas a nossa aula de hoje não é sobre girolanda ou gatos e seus miados. Mas sim de matemática. Presta atenção.
Zezinho: (levantando-se e com o caderno na mão) Dona, quanto é 1 + 7 + 5 + 4?
Professora: (irritadíssima) Cala essa boca menino. Olha que eu mando esse apagador na sua cabeça.
Zezinho: (sentando-se) E depois a senhora manda tirar um raio-x da minha moleira?
A professora desiste de falar com o menino. Ela volta-se e continua escrevendo a tabuada do 2 no quadro negro.
Zezinho: A senhora tem um fusca?
A mestra coça a cabeça; ajeita os cabelos brancos e os óculos sobre o nariz, mas não responde.
Zezinho: Meu pai comprou um fusca branco. Veio lá de Natal, no Rio Grande do Norte. A senhora já andou de fusca? Minha mãe disse que custou só R$ 1.990. A senhora acredita?
A professora nervosíssima, coloca o livro sobre a mesa, o giz no quadro negro e sai da sala. Quando volta vem acompanhada pelo inspetor. Todos os demais alunos iniciam uma conversa que se generaliza. Burburinho.
Professora: (apontando o Zezinho) É aquele ali.
Inspetor: Vem pra cá moleque.
Zezinho levanta-se e, com bastante medo, caminha em direção ao funcionário.
Zezinho: (olhando, de baixo para cima, o rosto do homem) O senhor vai morder o meu pescoço que nem o morcego; que nem o Drácula?
Professora: (dirigindo-se ao inspetor) O que é que eu faço com este menino?
Inspetor: Deixa comigo.
O funcionário e o menino saem. Na sala da inspetoria o homem manda o garoto sentar-se na cadeira postada defronte a sua mesa.
Inspetor: O que é que está "pegando", garotinho?
Zezinho: E eu sei lá? É verdade que o Batman é um morcegão dentuço?
Inspetor: Você não para quieto. Vou falar pra sua mãe te levar pra médica. Conhece a Rita?
Zezinho: Que Rita?
Zelador: A Rita Linna. Conhece?
Zezinho: Não. Eu conheço o Billy Rubina e um amigo do meu pai que chama Silly Kone.
Inspetor: (irritado) Olha, vou chamar a sua mãe e pedir que ela, no mínimo, te leve a um psicólogo.
Zezinho: Minha mãe já me levou, mas ele não quis mais me ver; disse que ficou muito atrapalhado comigo. O senhor é maestro?
Zelador: Que mané maestro, moleque?
Zezinho: Maestro é o que rege a orquestra. O regente. Já ouviu falar?
Inspetor: (carimbando as cadernetas dos alunos) Não tenho nada com maestros, regentes. Fique quietinho. Já vai dar o sinal do fim das aulas. Você já vai embora.
Zezinho: O senhor já andou de ônibus?
Zelador: É claro.
Zezinho: Minha mãe falou que pegou um ônibus e tinha um morcêgo tipo Drácula lá dentro. O senhor acredita?
Inspetor: Hã-hã.
Zezinho: Então... Ela falou que a manicure, que estava com ela, disse que o morcego só andava de ônibus. E que o motorista bateu nele com uma vara de bambu. Sabe aquelas varas de pescar mandi?
Entra uma faxineira varrendo o chão. Passa a vassoura sobre os pés do menino, que se levanta rapidamente. A mulher vê uma moeda de R$1 no chão, abaixa-se, pega-a, certifica-se que os demais não notaram e a guarda no bolso.
Faxineira: (olhando para o forro) Ganhei do meu vizinho.
Zezinho: (apontando a mulher) Ela é uma bruxa? É verdade que o Jonas ficou três dias na barriga da baleia? O senhor conhece o Jonas? É verdade que o Jonas é um ladrão e que por isso fugiu e depois disse pra mulher que a baleia tinha engolido ele?
A faxineira sai da sala.
Zezinho: Minha mãe falou que o diretor da escola rasga notas promissórias e duplicatas.
Inspetor: Olha deu o tempo. Terminou. Por hoje chega. Vai. Volta para a tua classe, que já deve estar vazia, pega as tuas coisas e vai para casa.
O menino caminha em direção à porta mas para e volta.
Zezinho: Qual é a diferença entre 100, cem e sem?
Inspetor: (muito irritado) E eu sei lá moleque?
A professora entra na sala.
Professora: (bem calma; passa a mão na cabeça do menino) E aí garotinho, melhorou? Toma tuas coisas.
Zezinho: (saindo) Melhorei. Meu tio Richard vem me buscar. Conhece o tio Richard?
Inspetor: (desolado e choroso) Minha Nossa Senhora. Que maldade eu fiz pra merecer este castigo?
Professora: Não é brinquedo não. Te cuida linguarudo.
Desce o pano.