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- Seu marido anda pulando a cerca, minha amiga? Você sabe quem seria a sirigaita? Ora neném não se apoquente. Não precisa ficar nervosa, neurótica, depressiva ou buscar ajuda lá no doutor Silly Kone. Nada disso. Relaxa e releve.
As palavras de consolo eram ditas por Van de Oliveira Grogue à Elza. Ambos partilhavam o almoço num local reservado do Bar e Restaurante do Bafão, o pioneiro em servir as primorosas e famosíssimas bistecas grelhadas de Tupinambicas das Linhas.
- Sabe que a tal zinha pode até ser casada? E se for mesmo você pode estar à beira de um escândalo daqueles! – profetizou Grogue sorvendo um gole generoso de cerveja.
- Essa carne está dura demais. – reclamou Elza. - Eu prometi que nunca mais comeria carne vermelha, mas não consigo segurar a vontade.
- Não se preocupe. Quem não come carne pode ficar anêmico. Sabe aquela cor pálida, o emagrecimento exagerado e a falta de ânimo? Então, isso pode ser consequência da carência de carne vermelha.
- Mas que ódio! Veja só as minhas olheiras! Faz 15 dias que não durmo direito. Veja as manchas escuras nos meus braços. – Elza falava e mostrava os cotovelos depois de ter apontado as nódoas arroxeadas debaixo dos olhos. Estou me acabando com tanto sofrimento. Eu nunca traí o sacana. Sempre tive o maior respeito pelo cara e olha o que eu ganhei. No meu prédio todo mundo sabe que o galinha anda com vadias.
- Não fica assim não Elza, minha querida. Olha, beba mais um pouco de cerveja que ajuda a acalmar. E, perceba, você não comeu a salada. Não gosta de alface? – Van parecia mesmo preocupado com a saúde da amiga.
- Estou emagrecendo por causa do nervoso. Já notei até pelancas. Está vendo aqui ó, debaixo do braço? Isso não é pelanca? – A moça tinha o tom choroso na voz.
- Para com isso. Imagina que uma princesa como você pode ter pelancas nessa idade. Mas nem 10 chifres do safado arreliado podem te fazer isso. Ora veja. – Acalmou Grogue pigarreando em seguida.
- Sabe Van me contaram que a mulher com quem o infeliz me trai é casada e tem dois filhos. – confidenciou a moça em tom baixo e lamentoso. – E que a filha da puta é empregada doméstica. – concluiu a traída.
- Não, não, não. Não se desespere, não faça nada que possa te comprometer. Talvez você se sinta melhor se pagar na mesma moeda. Entende?
- Não sei se tenho coragem. Nunca fiz isso em toda minha vida. – rebateu Elza ao tocar os lábios com um guardanapo.
- Eu não te aconselho a fazer coisas erradas. Se você quiser eu mesmo chamo o devasso e conto a ele que você já sabe de tudo. Ih, olha lá quem vem chegando. – Van fez um gesto com a mão chamando a atenção do moço que acabara de entrar no recinto.
O rapaz alto, esbelto e muito bem vestido, ao perceber o amigo sentado à mesa, com uma jovem, se aproximou.
- Olá Mauro, como vai? Você conhece a Elza? – perguntou, em tom cordial, o Van de Oliveira. E depois: - Elza, esse é o meu amigo Mauro. – ambos cumprimentaram-se deixando transparecer interesse mútuo. - Você não quer sentar-se? – arrematou Van Grogue.
Para a sofrida Elza que nunca esperara uma traição por parte daquele marido, a quem dedicara todo o afeto do mundo, abria-se a oportunidade de encontrar o tão esperado equilíbrio.
1. 2008
O sonambúlico doutor Silly Kone, psiquiatra de Tupinambicas das Linhas, sentindo-se zonzo naquela manhã fria de 24 de Junho, examinou a agenda de compromissos do consultório, e por não constar nada de interesse, voltou para a cama.
Ele percebeu-se fora de forma, por isso seus movimentos estavam lentos. Os cabelos desgrenhados e a barba por fazer, em outro local e hora, poderiam indicar deterioração mental, passível de socorro.
Mas Kone não se preocupava muito com o que pudessem pensar dele. Então notando a halitose insuportável, levantou-se novamente e, no banheiro, escovou os dentes.
Ao terminar o ato, bafejou o espelho, fazendo após, na película vaporosa, com o indicador direito, um T.
Aliviado retornou para a cama. O quarto tinha condicionador de ar, e a temperatura agradável, apesar do ruído, fez com que Kone pegasse logo no sono.
2. 1967
O menino de olhos verdes, descalço, vestido com short preto, sem camisa, aproximou-se da turma de crianças, reunidas naquela manhã de sábado, na rua perto da escola, onde naquele horário não havia aulas e, pedindo para participar da pelada, disse chamar-se Sidney Morgano, sendo morador no quarteirão de cima, numa casa dos fundos de uma loja pequena de armarinhos.
Os meninos naquele dia, brincaram, todos juntos, sob o sol escaldante, até o momento em que foram chamados, por suas mães, para o almoço.
Depois da refeição as crianças voltaram para a rua, mas sem a bola, desaparecida após um chute violento do Kone, que a fez sumir sobre os telhados das casas vizinhas, durante uma brincadeira no quintal. Eles passaram o resto do tempo, naquele dia, divertindo-se com o pega-pega.
Num certo momento da correria, Morgano convidou Kone para irem à sua casa, onde beberiam água.
Para entrar os dois meninos, pecorreram um corredor comprido, ornado com 7 vasos de comigo-ninguém-pode, encostados na parede do lado direito de quem saia, ingressando na sala onde, além da mesa circular, uma estante com livros de odontologia, havia também um pickup grande, daqueles que combinavam rádio e toca-discos.
Passaram pela sala e na cozinha saciaram a sede. Na volta Kone quis saber como funcionava aquela máquina. Morgano mostrou o aparelho, abrindo-o e explicando que tocava long-plays que giravam 33,33 vezes por minuto.
Kone lembrou-se logo de um primo, que por ser rádiotécnico, tinha também alguns dequeles na sua oficina. Mas para mostrar como era o mecanismo do engenho, Morgano ligou-o fazendo tocar From Me To You, dos Beatles.
3. 1970
Então Sidney desceu do banco do carona da pickup, que ficara parada com o motor ligado, defronte a casa do Kone, e batendo com força na porta da residência, chamou o amigo para uma viagem.
Silly não esperava por aquilo, mas entusiasmado, porém curioso pelo que motivava aquele convite inusitado, aceitou o passeio.
Silly Kone subiu na carroceria da pickup que era dirigido por um amigo do Sidney, e foi então desprotegido do mesmo jeito que ia, quando um tio açougueiro o convidava para ver o sítio, onde tinha plantações de melancia e abacaxi.
Depois de algumas horas de viagem desconfortável, em que vascolejaram muito, chegaram ao local não identificado por Kone.
No sítio foram logo recebidos por duas mulheres, que áquela hora da manhã, já preparavam o almoço. Enquanto esperavam, os três rapazes, arreando dois cavalos propuseram-se a laçar um boi no pasto.
Chovia naquela hora, e Kone montava um dos cavalos; o outro montado por Morgano, fazia sobrar a pé o dono do sítio, que se desesperou ao ver um dos bois, a serem laçados, fugir encosta abaixo.
O dono do sítio, com um gesto brusco, fez Kone apear da montaria, ocupando o seu lugar. Pegando o laço que estava na sela, perto da sua perna direita, ele saiu em disparada no encalço do boi fujão.
O animal foi laçado, trazido para cima, e preso na mangueira perto da casa.
Algum tempo depois as mulheres os chamaram para o almoço. A mesa posta, além do arroz e feijão, tinha muitas carnes; havia bifes de carne de porco, de vaca e frango frito. Todas muito mal passadas.
A conversa entre as quatro pessoas, durante a refeição, pareceu estranha e muito esquisita ao Kone, porém não o impediu de satisfazer-se com tanta iguaria.
Após o almoço, Kone acendendo um cigarro, sentou-se numa poltrona instalada perto da porta da sala, enquanto todos os demais integrantes do grupo, reunidos na cozinha, papeavam alegres.
Depois das 17 horas, os três rapazes se preparavam para voltar. Colocaram muitas coisas na carroceria da pickup, cobrindo-as com um encerado. Kone, com algum esforço, subiu na caçamba pisando no pneu direito trazeiro e sentando-se sobre a lona úmida.
Ele se arranjava para o desconforto da volta, quando depois de todos embarcados, uma das mulheres saiu da casa oferecendo pipoca aos viajantes.
Nenhum dos dois rapazes aceitou, só Kone pegou aquele pacote, entregue pela mulher, que lhe sorria amável.
4. 2008
Silly Kone acordou as três da tarde. Não tinha tanta vontade para voltar ao consultório. Apesar de tudo sentia-se ainda muito cansado. Precisava de férias. Se possível perto do mar, numa praia ensolarada e aprazível onde pudesse desfrutar de bons momentos até então escassos na sua vida.
Mas, apesar dos desejos ardorosos de mudar um pouco de ares, logo o telefone tocou trazendo-o ao dia-a-dia. Era uma cliente que morava na vizinhança, desejando marcar uma consulta para a filha adolescente, de quem suspeitavam estar acometida pela esquizofrenia hebefrênica.
O doutor Silly Kone tinha mesmo que trabalhar.
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