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Um lindo exemplar de peixe, aliás, uma formosa garoupa, movia-se lentamente beirando a margem esquerda do rio, naquele belo anoitecer de sexta-feira.
Ela vinha pensando na filha que, contrariando todos os seus ensinamentos, resolvera morar, sem as formalidades do noivado e casamento, com aquele cascudo irresponsável que vivia folgadamente com os beiços abertos, guelras ativas e as nadadeiras inquietas, dentro duma imensa caverna de rocha da cachoeira da cidade.
- Eu falei para aquela menina tomar cuidado com tal namorado. Primeiro porque ela era ainda muito nova pra manter um relacionamento afetivo e segundo que eu não estava com idade legal pra ser vovó - dizia em voz baixa, soltando bolhas de ar na água, a garoupa passeadora.
- Eu sabia que você estaria aqui nesta hora por isso não pude deixar de vir - falou o escorpião idoso quando ela, nadando suavemente, aproximou-se despercebida.
- Ai que susto, escorpião! - respondeu a garoupinha - Não era para você estar na reunião a essa hora?
- Sim a essa hora era pra eu estar presidindo o encontro dos filantropos. Mas para mim, por enquanto, está muito difícil permanecer. Eles dizem, insistem, que foi por eu ter indicado você pra presidir o conselho particular do cardume, que as finanças do caixa arruinaram-se todas - afirmou com segurança o escorpião.
- Ah, vá! Imagina se 100 ou 200, iscas, depois das colheitas fartas, fariam falta pra aquele aquário enorme. Fiz até um bazar de roupas usadas pra promover a entidade.
- É, mas o pessoal desconfiou de você e como não podia deixar de ser, veio me cobrar.
- Ah, para com isso escorpião! Nao há provas que eu meti as nadadeiras naquelas iscas.
-Sim, mas o zunzunzum é forte.
- Escorpião pode parar. Se você continuar com esse assunto nado até a outra margem e te deixo sozinho.
- Esta bem. Vamos mudar de assunto. E o gato? Dizem que ele te come, é verdade?
- O gato vereador? Imagina só gente! O gato me comendo! Essa é boa.
- O comentário geral lá no aquário é de que você perdeu parte do seu rabo nos rolos com ele. É verdade?
- Claro que não - indignou-se a garoupa formosa - Por causa da minha posição de liderança - presidência do cardume no aquário - ele se aproximou de mim. Mas ele só me lambia. Comer, ele não comia não.
- Olha, peixe, estou disposto a esquecer todo aquele assunto das iscas desviadas. Posso até defender você nas reuniões. Se for legalzinha comigo, entende? Posso dizer que as iscas eram pros pobres e que você, também sendo pobre, não fez nada mais do que adiantar sua parte. Que tal?
- Escorpião, você só pode estar ficando louco. Sua cabeça deve estar cheia de fumaça de óleo diesel.
- Exatamente. Estou louco de amor por você, minha peixuda!
- Mas você é casado criatura venenosa! Onde já se viu isso?
- Minha mulher não quer saber mais de mim. Vem minha beiçudinha escamosa; vem que o papai quer te beijar.
- Mas você garante o suprimento de iscas e de tudo o que eu e minha peixota precisarmos?
- Naturalmente, minha garoupa querida. Vem com o vovô, vem!
Enquanto pensava "esse escorpião velho, pai de um monte de escorpiõezinhos, que parecia ter a respeitabilidade de um professor ou diretor de escola aquarial estadual, não passa de um cafajeste comum" - apareceu de repente ao lado de ambos, falando fino, igual a uma fêmea, um imenso e tamanduá rabudo.
- O que é isso tamanduá? Como é que você chega assim, de repente?
- Desculpa gente. Eu não queria “cortar o barato” de vocês. Mas é que eu estou procurando formigas. Sou candidato a reeleição e vim pedir votos. Onde estão as formigas?
O escorpião e a garoupa entreolharam-se.
- Lá vem você de novo com essa história de eleição? Não tem vergonha na cara não, ô tamanduá? – indignou-se a garoupa.
Sem dar qualquer atenção ao pedinte costumeiro o casal iniciou movimento afastando-se.
- E se começarem a falar da gente? – perguntou a peixe sentindo esperança e medo.
- Ah, daí a gente publica um monte de fotos suas ao lado de um pescador qualquer pra baratinar. Morou?
Com a pinça e a nadadeira entrelaçadas a garoupa e o escorpião saíram em direção ao aconchego da toca, defronte ao velho rancho de pescarias.
Há alguns anos passados, numa certa ocasião, fomos convidados por alguns colegas, a permanecer uns dias num rancho de pescarias na beira do rio.
Passadas várias horas depois da nossa chegada, numa tarde, apareceu repentinamente um vendedor puxando um carrinho de mão - uma espécie de carroça - sobre a qual havia mandiocas, laranjas e uma porca.
Na verdade o bicho era uma pequena leitoa que, agitada entre as mercadorias do ambulante, dava sinais de que a qualquer momento escapuliria do seu proprietário perdendo-se no emaranhado confuso da vizinhança.
- O senhor não me faria a gentileza de guardar, por um tempinho, essa minha porca enquanto vou ali atender uma freguesa que comprou de mim essas duas dúzias de laranjas e os dois quilos de mandioca? – perguntou-me o carroceiro velho.
Observando que a bicha não parava quieta, não tinha sossego, concordamos com seu dono trazendo o animal para dentro da casa; logo percebemos que o tal mamífero buscava alimento.
Colocamos então numa vasilha um pouco de café com leite além duns pedaços de pão, servindo desta maneira, a porquinha esfaimada.
O atirar-se com sofreguidão sobre os alimentos e a ingestão atabalhoada nos fez pensar que há muito o pequeno animal não comia.
- Nossa! Ocê viu como ela se "pincho" em cima das coisa? - perguntou Sinhá Chica, a velhinha aposentada presente no local.
De fato a volúpia, a pressa, com que o bichinho botou para dentro o alimento talvez tivessem sido as causas do imediato regurgitamento seguido duma evacuação profusa e mal cheirosa de fezes.
Diante de tanta sujeira, maus odores, e o voejar pertubador das moscas, não tivemos outra ideia do que a de lavar a pequena porca no chuveiro.
Com a mangueirinha e esguichos fortes de água morna os restos de vômito e cocô foram, aos poucos, sendo diluídos.
Limpa dos dejetos, outra melhor sugestão, de que devíamos devolvê-la rapidamente ao seu dono, não nos ocorreu naquele momento.
Depois de uma ou duas horas o carroceiro, ofegante, com a língua grande e grossa pra fora, apareceu.
Nem bem perguntou por seu animal e a porquinha pulou dentro da carriola.
E lá se foram o dono e seu bicho rua abaixo.
Passados alguns dias qual não foi a nossa surpresa ao ver que depois de liberta, completamente asseada, a suína hiperativa voltou à mesma sujidade com que certamente estava habituada e sem a qual nunca se sentiria tão bem.
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