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Henriqueta Fossa e Elisa Buffa conversavam na esquina:
- E aí, amiga? Sarou da ressaca? - perguntou Elisa.
- "Mardita" pinga aquela que me deram... Me fez um "mar" terrível - respondeu Henriqueta.
- Toma um chá de boldo, comadre. Você vai ver tudo melhora - consolou Elisa. E depois concluindo:
- A senhora já passou dos 82 anos. Não seria bom parar com a talzinha?
- Que nada filha... O que é que a gente vai fazer numa quiçaça dessas? Se não tem o boteco, o que a gente faz?
- Mas dona Henriqueta... E o crochê, minha nega? - provocou Elisa.
- E lá eu sou velhota de crochê? Ora faça-me o favor dona Elisa. E me dê licença que meu feijão está no fogo; parece que a panela tá bufando.
- Vai dona Henriqueta... Vai... Vai tomar... Lá na sua cozinha, conta do seu feijão.
Depois do almoço, lá pelas três horas da tarde, Henriqueta saiu de casa e foi direto ao armazém da esquina onde pretendia comprar o leite e o pão para o café da tarde.
Como não gostava de caminhar pela calçada, a velhota, alta, magra, desengonçada, que falava grosso devido a um problema na garganta, iniciou o percurso pelo meio da rua.
Enquanto caminhava um automóvel vendendo pamonha anunciava pelo alto-falante:
- Olha a pamonha, senhora dona de casa. É o legítimo creme do leite. É a pamonha de Tupinambicas das Linhas. Venha conferir minha senhora...
Henriqueta sentiu-se incomodada. Teria sido aquela funesta Elisa Fossa, a vizinha maledicente a responsável por essa gandaia toda no quarteirão? Quem é que aguentava tanta judiação?
Não teve tempo de concluir o seu raciocínio porque já tinha chegado ao armazém.
Havia um pessoal aglomerado, esperando numa fila, a vez de pagar o que comprara, no caixa.
Sentindo-se insegura Henriqueta imaginou que se estivesse na sua cidade natal, Salvador, na Bahia, estaria bem menos nervosa.
- Seu Messias, eu quero 24 pães. Me põe em dois sacos, faz o favor. E me dê também um litro de leite de caixinha. De saquinho já ando cheia.
Messias conhecia bem a figura. Olhou-a por cima dos aros dos óculos e disse:
- Ô Almeida: atende a dona Henriqueta. Que ela tem pressa.
Almeida, atrapalhado com as suas 1001 ocupações no armazém, deixou o que fazia e atendeu a freguesa dando a ela o que pedira.
Saindo com os embrulhos Henriqueta sentenciou:
- Põe tudo na minha conta, seu Messias, lindinho da vovó, que no final do mês a gente pagamos.
Messias tirou a caneta que estava equilibrada na orelha direita e anotando a despesa numa folha de papel, passou a receber o dinheiro dos demais que estavam na fila.
Na volta, caminhando pelo meio da rua Henriqueta sentiu-se obrigada a usar a calçada porque um caminhão vendendo gás de cozinha passava anunciando, tendo ao fundo a sinfonia Für Elise, do compositor alemão Beethoven, a mercadoria pelo alto-falante:
- É o gás, meu amigo, minha amiga e senhora dona de casa. Aproveite a promoção. Leve agora o seu gás e ganhe um brinde lindo.
Chateada Henriqueta chegou a sua casa. Quando se preparava para tomar o café alguém tocando, com insistência a campainha foi logo lá de fora gritando:
- Como é sua velha safada!!! Quando vai pagar os 182 reais que me deve?
Era Elisa Buffa que, acarinhando a barbicha branca de um bode velho, parada defronte ao seu portão, incomodava-a mais outra vez.
"Do mesmo jeito que os escravos, no tempo do Império, morriam nos canaviais dos senhores de engenho, morrem hoje os cortadores de cana, nos canaviais das usinas de álcool." (Frase atribuída a E. Mail, antes de cair desacordado, no boteco da tia Cris, vitimado pelo coma diabético)
Van Grogue, já atordoado pela ingesta da água-de-briga, entrou naquela tarde de segunda-feira no bar da tia Cris. O ambiente estava às moscas. Não havia freguês e o balcão desguarnecido.
Do rádio velho, postado numa prateleira acima da pia, onde a dona lavava os copos, vibrava uma canção. Era do tempo em que Roberto Carlos andava de calças curtas na periferia de Cachoeiro de Itapemirim.
Grogue foi avançando, avançando e, sentindo necessidade de fazer xixi, resolveu ir ao banheiro. Ao fechar a porta, ouviu uma espécie de zum-zum. Eram vozes de moças que se divertiam com alguma coisa. Depois de fechar o zíper da calça, lavou as mãos e não contendo a curiosidade resolveu investigar o que era aquele auê.
Aproximou-se devagar, pé ante pé e viu quatro jovens sentadas em torno duma mesa circular. Elas falavam ao mesmo tempo e tinham seus dedos indicadores acima do fundo dum copo emborcado. Um círculo formado pelas letras do alfabeto limitava os movimentos da vasilha. Pelo que ele pode perceber, o copo movimentava-se respondendo as perguntas das meninas, parando defronte as letras, formando as palavras das respostas.
Grogue viu que não foi notado. Aproximou-se das moças. Elas faziam perguntas e o copo mexia-se dentro do círculo. Uma delas perguntou se um parente subiria na vida. Enquanto viam os movimentos do copo, Grogue achou que poderia muito bem passar por trás delas e, subindo aquela escada de madeira, entrar na casa da tia Cris, sem que elas percebessem. Resolveu arriscar. Degrau por degrau foi ascendendo. Logo depois, quando estava quase lá em cima, olhou para baixo e elas animadas viram que o copo dizia que, aquele parente de uma delas, não ficaria muito tempo nas alturas do sucesso.
Van Grogue achou que aquilo tudo era uma brincadeira sem graça e vendo que poderia enganar as moças começou a descer as escadas.
Quando passou novamente atrás delas, foi chamado para participar da brincadeira. Ele disse que não achava graça nenhuma naquilo e se afastou.
Uma das jovens disse então pra tia Cris que aquela brincadeira servia para medir a sugestionabilidade dos sujeitos.
Van Grogue entrou no salão do boteco e aguardando a proprietária, para ser servido, parou na porta do estabelecimento. Na rua um velho subiu à sua carroça e tomando as rédeas nas mãos, incitou o animal ao movimento. Ante a indiferença do burro em mexer-se, o velhote não perdeu a pose e disse: "Esse não é movido a álcool, mas também é difícil na partida".
Grogue, em resposta gritou: "Ô Edgar G. Anta... você não é o Noel, mas também não deixa de ser um bom velhinho."
Tia Cris entrou no salão e ouviu o pedido do Grogue. Ele queria pinga. A moça considerou aquele freguês um chato. Passava horas e horas sentado à mesa com um mísero copo de pinga. Não gastava, não consumia, e ainda enchia o saco de todo mundo. Ela então resolveu aplicar uma variante da brincadeira do copo: simularia uma conversa ao telefone. E foi assim, falando, falando que ela fez aquele tonto ir embora.
Van Grogue entrou, naquele entardecer de segunda-feira, no bar do Bafão onde, com um gesto ao proprietário atento, comunicou sua intenção de saciar-se de cachaça e cerveja.
Depois de ingerir, numa talagada, o conteúdo do seu copinho habitual de pinga, ele notou que havia um pessoal diferente reunido com o gerente bancário Célio Justinho, marido da raivosa Luisa Fernanda.
Eram dois homens claros, de estatura elevada, um deles já passando dos 60 anos, porém magro e o outro mais novo, que se destacava pelo abdome abaulado, impossível de ser disfarçado pela camisa larga e florida, que escorria sobre o bermudão bege.
Um deles dizia:
-You cannot get carried away by the temptation of the devil.
E o outro traduzia para Célio Justinho que, fascinado, ouvia atento:
- Você não pode se deixar levar pela tentação do demônio.
- Because he tries to maliciously trying to take him to error, sin.
- Pois ele o tentará maldosamente buscando levá-lo ao erro, ao pecado.
Com um copo transbordante de cerveja numa das mãos, o pregador prosseguia:
- The devil whispers in your ear trying to end his life. He has a lot of envy and hate you.
- O capeta sussurra na sua orelha buscando acabar com a sua vida. Ele tem muita inveja e ódio de você.
Não se interessando pela conversa e nem mesmo desejando interrompê-la, Van de Oliveira, se apossou da garrafa de cerveja, do copo limpo, e caminhando em direção à mesa do canto, perto da porta, onde costumava ficar, sentou-se lentamente.
Van Grogue ingeriu um gole e, assim como que num passe de mágica, plim-plim, desconectou-se do ambiente.
Vestindo um calção azul, uma camisa branca com bolso do lado esquerdo, sandálias de couro, fivelas cromadas, o menino caminhava ao léu, pela rua principal da cidade.
Ele prosseguia devagar, olhando tudo, de um lado para o outro, entre os transeuntes apressados, que iam e vinham, vivenciando aquela azáfama do dia a dia.
A criança parou defronte uma loja de armarinhos, onde lá dentro havia um casal de meia idade.
Atrás do balcão, o homem, à direita da mulher, media um tecido verde com o metro amarelo de madeira. Eles conversavam entre si, mas ambos olhavam para o menino estancado na calçada.
Impelido, o menor iniciou a caminhada para dentro do salão. A mulher, ante a aproximação do estranho questionou-o:
- O que você quer?
Sem ter o que responder o guri viu-se embaraçado, tenso. O homem então perguntou:
- De onde você veio?
- A minha avó mora ali na esquina.
O casal se olhou e, o homem conseguindo identificar a pessoa citada, acalmou a companheira, que mais a vontade, fixou o olhar no menino. Então o homem perguntou:
- Você conhece o Pedrinho?
Sem esperar a resposta, e sob os protestos da mulher, o comerciante fez o garoto passar por uma abertura lateral, na qual uma cortina de pano verde escuro servia de porta, encaminhando-o assim para os fundos da loja.
Ao andar sozinho pelo corredor o menino ouvia alguém que falava numa língua estranha:
- The books are on the table.
O garotinho foi se aproximando até que pòde ver dentro de um quarto, cuja porta e janela estavam abertas, um adolescente todo vestido de branco, sentado sobre a cama. O mocinho recostado no travesseiro grande lia e relia a lição de inglês.
Quando percebeu a presença daquele estranho o estudante perguntou ao pai que estava lá na loja;
- Quem é, pai?
E de lá, o homem respondeu:
- É um vizinho. Um coleguinha seu.
- But where's the book? – continuou o aluno, olhando, da cabeça aos pés, o forasteiro medroso. Em seguida disse:
- Sente naquele banquinho. De onde você vem?
Enquanto explicava que era neto da mulher que morava na esquina, o visitante viu que aquela pessoa, com muita dificuldade, procurava se levantar da cama.
O pequeno e curioso forasteiro nunca tinha visto uma pessoa deficiente.
Com bastante esforço o estudante levantou-se, deixando ver que seu corpo, pálido e magro, não tinha parte do braço direito, que as pernas, e também os pés, eram atrofiados.
- Espere ai que eu já volto. - disse o jovem, depois de apoiar-se no par de muletas, que pegara da cabeceira da cama.
Enquanto ficou só, o menino pôde ouvir as vozes que vinham da loja.
Algum tempo depois, sacolejando, o aluno do ginasial entrou no quarto, sentou-se na cama, ajeitou o travesseiro às suas costas e prosseguiu com a lição:
- But you, what you want from me?
Vendo que a lengalenga não passaria daquilo e sentindo-se mal com o zunzunzum vindo da loja, o jovem visitante comunicou seu desejo de ir-se embora. E sem esperar por qualquer resposta retirou-se.
Quando o menino passou pelos comerciantes que ainda estavam atrás do balcão, ele ouviu a mulher dizer:
- Mas já vai? É tão cedo ainda...
No boteco do Bafão, Van de Oliveira Grogue reconectava-se com o meio ambiente.
- Note that the addiction can take you to disease, epilepsy report. Quit it already. – dizia o pastor com o copo de cerveja na mão.
O companheiro do pregador traduzia para Célio Justinho e Bafão que estavam atentíssimos:
- Veja que o vício pode levá-lo à doença, à epilepsia. Saia disso já.
Van Grogue levantou-se da mesa, caminhou cambaleante até o balcão, para pagar a conta e sair, quando o pregador, olhando para ele, disse em português:
- Arrependa-se! Saia dessa vida louca enquanto é tempo!
Para o espanto geral Van Grogue, sacando os caraminguás contados para pagar a despesa, respondeu:
- O quê!? Eu não quero nem saber.
Depois de passar o dinheiro ao Bafão, e massageando o braço direito, ele afirmou com voz poderosa, ao sair:
- Hoje vai dar águia na cabeça meu amigo. Já ouvi até o apito do trem.
03/01/12
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