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O Cavaleiro das Trevas

por Fernando Zocca, em 25.07.14

 

 

Quase todos sabem que a vida sedentária, isto é, aquela em que a pessoa fica muito tempo sentada ou parada, não faz bem para a saúde.

As consequências para aqueles que não se mexem são bastante desagradáveis. Uma delas é a obesidade. Depois disso, a pressão alta, o diabetes, os riscos maiores de infartos e os derrames cerebrais estarão sempre presentes. 

Sabedor disso eu vou, pelos menos quatro vezes por semana, até a área de lazer do Piracicamirim, onde corro durante uma hora. 

Não é uma corrida desabalada vista comumente nos campos de futebol. Os entendidos no assunto denominam o estilo de "trote"; seu ritmo é mais rápido do que o passo comum e mais lento comparado com o chamado galope.

Depois do exercício geralmente eu me sento num daqueles bancos até baixar a temperatura e o ritmo cardíaco voltar ao normal. 

Numa destas ocasiões sentou-se ao meu lado um cidadão magro, de estatura mediana; ele tinha os cabelos já embranquecidos, usava óculos de grau, vestia camisa de mangas longas donde tirou um maço de cigarros, sacou um deles e acendeu-o com o isqueiro, que buscou no bolso da calça social cinza. 

Depois da baforada, que soltou sobre a minha cabeça suada, ele me perguntou:

- Vejo sempre você correndo por aqui. Como faz isso?

Eu lhe expliquei que antes de correr é preciso reaprender a caminhar. Para os que estão acostumados a locomover-se sentados, nos sofás dos carros, é bom começar fazendo trajetos curtos. Depois então é que se iniciam as corridas.

- Você é de Piracicaba? - ele me perguntou.

- Sou sim - respondi-lhe - moro aqui há mais de 60 anos.

- Eu também sou nascido e criado nesta terra. Sou funcionário afastado da prefeitura por causa do nervo ciático - contou ele soltando outra baforada para o meu lado,  -  mas no meu tempo de moleque não tinha esse tipo de diversão, essas áreas de lazer. A gente ia quase sempre para os ranchos de pescaria.

Eu então me lembrei de que há muito e muito tempo frequentava, de vez em quando, o rancho de pescaria de uns amigos. 

- Quando criança - continuou o funcionário - depois que meu pai se desentendeu com os irmãos dele a gente foi morar numa casa bem simples que estava desocupada. Meu pai colocou forro, soalho e fez outras reformas. Os parentes dele diziam que ele era o Batman, sabe o Batman, o cavaleiro das trevas? Falavam assim porque, segundo eles, meu pai, quando brigava, batia muito. Ele era o Batman e eu o Robin. Sabe aqueles dos gibis?

- É claro que sei. Eu colecionava gibis e trocava os repetidos, antes do início das sessões da tarde, nos cinemas naquela época. 

- Então, numa ocasião - continuou o meu mais recente confidente - um dos meus tios me convidou para passear de caminhão. Ele me disse que eu deveria ir na carroceria, que era de madeira. Eu tinha, acho que uns 10 ou 11 anos. Logo que subi na carroceria onde ia de pé e sozinho, vi um pano acetinado preto, jogado num dos cantos. Era uma espécie de capa. Sabe aquela do Robin?

- Sim sei.

- Então... Coloquei ela na costa e amarrei as duas pontas no pescoço. Ela tremulava com o movimento do caminhão. Ficava até bacana. Quando passamos perto da Rua do Porto, onde havia um grupo de pessoas, algumas delas gritaram "ei, mascarado!!!"; isso me deixou bem, mas bem chateado mesmo.

Eu percebi, naquele momento que o cigarro do meu interlocutor já havia chegado ao limite, quando então ele acendeu outro e continuou:

- Depois que a gente mudou para aquela casa que foi reformada por meu pai, logo em seguida uma outra família veio morar na vizinhança. O casal tinha quatro filhos. Três meninas e um menino. Eram todos ainda muito crianças. Mas fizemos amizade e eu ia mais na casa deles do que eles vinham na minha. Numa tarde, não sei porque (acho que por excitação, sabe... Tesão mesmo?) eu convidei uma delas pra brincar de médico. Ela ficou na dúvida. Então eu expliquei que ela seria a paciente e eu o doutor que a examinaria. Ela teria que tirar a roupa; só assim a brincadeira daria certo. A menina ao invés de me dar uma resposta foi consultar a irmã mais nova. Esta, por sua vez, resolveu perguntar para a mais velha. Se ela permitisse, ai sim, então a gente brincaria.

Eu estapeava os mosquitos quando então o funcionário afastado, por causa do ciático inflamado, continuou:

- A irmã mais velha, olhando-me de cima pra baixo, bem desconfiada e com certa zanga, chamou todo mundo e atraindo-nos para defronte a escada que ficava bem na frente do quarto de dormir dos pais dela, sentar-se num dos degraus e, com ar sério de autoridade, ouvir minhas explicações, sobre a brincadeira, disse que não permitiria que isso acontecesse. Mas de jeito nenhum. Eu fiquei muito chocado, contrariado, com cara de tacho. Bom, passou bastante tempo, até que recebi na minha casa a visita do meu coleguinha, irmão das meninas. Ele me convidava pra ir ao rancho de pescarias junto com o pai dele. A gente tinha que sair bem cedo. E foi isso mesmo o que aconteceu. Não me lembro se fomos de ônibus. Mas acho que percorremos uma parte de ônibus e outra, nós fizemos a pé. Quando chegamos lá e quando o paizão abriu a porta do digamos, barraco, o odor era muito desagradável. Ele então abriu as janelas e o clima melhorou. Bom, quando a noitinha vinha chegando ele resolveu fazer a janta. Para isso deveria lavar alguns objetos. Sabe aquela tralha de cozinha? Ele pegou uma frigideira, que continha resíduos de óleo e peixes, chamando-me até a escada que ficava na margem do rio, e sentando-se num dos degraus, pôs-se a, ostensivamente, esfregar limão no recipiente. Logo depois pegando areia do barranco passou a arear a frigideira. Sabe, foi a ênfase que ele pôs nos gestos que me deixou com a pulga atrás da orelha. Quando a noite chegou, o paizão chamou-nos, eu e o filho dele, pra frente da porta que dava pro terreiro pelo qual se devia passar pra chegar às margens do rio. Havia ali um bambuzal. Ele pegou uma vara grande, fina, bem comprida, e a sacudindo com força, fez com que os morcegos, que voavam por ali, se chocassem contra ela. Um dos morcegos, filhotinho ainda, caiu aos nossos pés. Ele então pegou, pela ponta da asa, o bichinho morto e mostrando-nos disse: "Está vendo como é?" Você sabe, eu sou bem retardado, demoro muito para entender as coisas, pra ligar lé com lé, cré com cré. Entende? Eu não imaginava o que o pai fera estava querendo dizer com aquilo tudo. Naquela noite, depois de tomar um café super forte, acho que coado na cueca do meu coleguinha, não dormi até o dia seguinte. Não sei, não tenho certeza, mas acho que foi naquela madrugada que começaram as minhas dores de cabeça e a insônia crônicas. 

- Mas agora você conseguiu sarar da insônia? Está curado disso? - perguntei me preparando para voltar para casa.

- É claro que hoje eu durmo normalmente. Não sofro mais por causa disso. Agora o que me incomoda é esse nervo ciático que não me dá trégua.

- Um dia, quem sabe, quando você sarar, poderá andar bem e até correr assim com eu faço hoje - disse-lhe.

- É verdade amigo. Tenho que parar como cigarro e a pinga. Não parece, mas é a "marvada" que me atrapalha - revelou ele. 

Cansado mas satisfeito, levantei-me e despedindo-me do meu mais novo colega, contador de histórias, fui direto para casa, onde um banho bem quentinho me aguardava.

 

 

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publicado às 03:12

A Fita Métrica

por Fernando Zocca, em 24.07.09

 

Van Grogue, naquela manhã de quinta-feira, sob a marquise do Banco da Colônia, na praça central de Tupinambicas das Linhas, chegou arfante. Trazia um cigarro, semi-consumido, entre o indicador e o médio da mão direita. Seus olhos arregalados procuravam um lugar vazio num dos três bancos ocupados pela galera folgada.
 
O pessoal, que matraqueava despreocupado, assustou quando Grogue chegou. O silêncio pairante, no local, eliciou a expressão emitida por Van, que mandou assim, na bucha, numa chuva de perdigotos:
 
- Vocês estão pensando que arma de destruição de massa, é um gordinho comedor de pizzas?
 
Em qualquer outra localidade do terceiro mundo, aquilo poderia ser interpretado como ato hostil de alguém maltratando um grupo inofensivo e brincalhão. Mas estávamos em Tupinambicas das Linhas, um trecho do universo conhecido por concentrar a maior quantidade de pirados jamais vista, durante toda a história da humanidade, sobre a face da terra. Por isso, e também por ser a figura conhecida, ninguém deu muita bola.
 
Mas Van Grogue era daqueles que confundia nas novelas a personagem com o ator. Misturava também, o infeliz, na literatura, as estações pensando sempre que os escritores escreviam sobre ele nos jornais ou falavam mal da sua terra, nos programas radiofônicos. Ora, os menos burros sabiam que aquilo era manifestação duma das facetas da paranóia. Mas os espertos e safados, procuravam botar lenha na fogueira, quando o provocavam, dizendo que esse ou aquele fulano falou ou escreveu algo sobre ele de forma disfarçada.
 
Um dos presentes, notando o rosto afogueado do Grogue, perguntou-lhe:
 
- Tá nervoso Van? Vai pescar!
 
 Van Grogue jogou a bituca para trás, sobre o ombro direito, não se importando, se poderia atingir alguém ou não, e então respondeu:
 
- Só se for pescar bosta! Esse riacho tá tão poluído que dá até vergonha, só de falar.
 
Alguém, lá na ponta direita da turma, lançou outro assunto na roda:
 
 - Tupinambicas das Linhas cresceu demais! Acho que a cidade já tem uns três mil habitantes! Está insuportável agüentar esse movimento!
 
- Realmente! É muito esquisita essa terra. Vocês não souberam que a professora da escolinha, foi pega fazendo bobagem com um moleque de 12 anos? Minha nossa! Deu o maior sururu!
 
Chuma, que estava de orelha em pé, arrematou:
 
- A tarada é casada com o Banja. Ocês não se lembram dele? Foi ele quem trouxe um museu de cera, montado num ônibus enorme, e exposto aqui na praça, já faz algum tempo. Então... Havia até uma figura de toureiro. O volume da calça dele dava a idéia de que tinha um documento forçudo. Essa tal de professora quis ver e, pensando que estava sozinha, no ambiente, abaixou a calça do boneco. Ela queria, porque queria, ver o tal do pipi de cera. Rapaz! Deu um cu-de-boi dos infernos. Se o Banja a deixar, pode até haver casamento entre ela o moleque.
 
Clique Douglas, que se mantinha alheio à prosa, resolveu dar seu palpite:
 
- Tudo degenerado! Isso é uma vergonha pra nação brasileira! Essa mulher, com 45 anos... mas será o impossível?"
 
Nesse momento, todos falavam ao mesmo tempo, quando uma magricela, baixinha, parecida com uma lagartixa doida, passou pelo grupo. As canelas finas denotavam que o design fora projetado pra locomoção sentada, na poltrona dos automóveis.
 
A encardida bateu a cinza do cigarro, na direção ao aglomerado, num gesto de desprezo, como se dissesse: “Bando de carniça! Gente ruim! Pancadas!"
 
Nesse momento um carro forte, trazendo a bufunfa abastecedora dos cofres do banco, estacionou perto da turma. O motorista não desligou o motor. A fumaça produzida irritou a galera, que se afastando, criticava, malhando o péssimo sistema econômico nacional.
 
 
Fernando Zocca.
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publicado às 01:07

Os caminhos da pescaria

por Fernando Zocca, em 22.07.09

 

                        O pato Donald havia acordado com muito mau humor naquela manhã fria. Ele bocejara e se espreguiçara fazendo estardalhaço. Logo depois ele foi ao banheiro e escovou o bico, chamou os sobrinhos lembrando-os que tinham marcado uma pesaria e, que já estava na hora de seguirem para o rio.
 
                        Os meninos acordaram contrariados, pois queriam dormir mais um pouco, mas não puderam: esbravejando Donald fez com que eles saíssem logo da cama.
 
                        Todos tomaram o café da manhã e seguiram então para a aventura. No meio do trajeto encontraram situações difíceis de resolver.
 
                        Numa delas o pato parou diante de uma encruzilhada. Por um dos caminhos ele chegaria mais depressa ao rio onde poderia pescar. Mas deveria passar por um terreno cercado, onde havia placas que diziam: Cuidado. Não atravesse. Terreno particular. Cães bravos.
 
                        Pela rota comum que seguia, Donald achava que também chegaria, mas estava bastante penoso e cansativo.
  
                        Donald nunca passara por uma situação daquelas. Não naquelas proporções. Ele sentia muito medo, mas não queria ser taxado de pato bocó. Ele sabia que estava errado, mas não conseguia evitar a tentação de atravessar o local proibido.
 
                        Parado no meio do caminho, Donald pôde perceber que os três cães dentuços, que guardavam o terreno, traziam coleiras nas quais havia seus nomes escritos.
 
                        Firmando a vista, o pato sem nenhuma dificuldade leu nas coleiras o nome de cada um dos cachorros. Numa delas estava escrito Cecé, na outra, Aikidô e na outra ainda havia grafada a palavra Kodgo.
 
                        Ao ver a feição dos bichos, Donald concluiu que eles eram mesmo ferozes e que o dono deles era também muito poderoso, podendo castigar com  severidade quem se atrevesse a violar aqueles avisos antes escritos.
 
                        Donald resolveu continuar no seu caminho considerado penoso, mas bem mais seguro.
 
                        Depois de algum tempo o grupo chegou ao rio e todos puderam pescar felizes.
 
                        Durante a volta Donald sentiu fome não se importando em disfarçar a feição tensa que o desconforto lhe causava.
 
 
Fernando Zocca.
 
 
 
 
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