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Quase todos sabem que a vida sedentária, isto é, aquela em que a pessoa fica muito tempo sentada ou parada, não faz bem para a saúde.
As consequências para aqueles que não se mexem são bastante desagradáveis. Uma delas é a obesidade. Depois disso, a pressão alta, o diabetes, os riscos maiores de infartos e os derrames cerebrais estarão sempre presentes.
Sabedor disso eu vou, pelos menos quatro vezes por semana, até a área de lazer do Piracicamirim, onde corro durante uma hora.
Não é uma corrida desabalada vista comumente nos campos de futebol. Os entendidos no assunto denominam o estilo de "trote"; seu ritmo é mais rápido do que o passo comum e mais lento comparado com o chamado galope.
Depois do exercício geralmente eu me sento num daqueles bancos até baixar a temperatura e o ritmo cardíaco voltar ao normal.
Numa destas ocasiões sentou-se ao meu lado um cidadão magro, de estatura mediana; ele tinha os cabelos já embranquecidos, usava óculos de grau, vestia camisa de mangas longas donde tirou um maço de cigarros, sacou um deles e acendeu-o com o isqueiro, que buscou no bolso da calça social cinza.
Depois da baforada, que soltou sobre a minha cabeça suada, ele me perguntou:
- Vejo sempre você correndo por aqui. Como faz isso?
Eu lhe expliquei que antes de correr é preciso reaprender a caminhar. Para os que estão acostumados a locomover-se sentados, nos sofás dos carros, é bom começar fazendo trajetos curtos. Depois então é que se iniciam as corridas.
- Você é de Piracicaba? - ele me perguntou.
- Sou sim - respondi-lhe - moro aqui há mais de 60 anos.
- Eu também sou nascido e criado nesta terra. Sou funcionário afastado da prefeitura por causa do nervo ciático - contou ele soltando outra baforada para o meu lado, - mas no meu tempo de moleque não tinha esse tipo de diversão, essas áreas de lazer. A gente ia quase sempre para os ranchos de pescaria.
Eu então me lembrei de que há muito e muito tempo frequentava, de vez em quando, o rancho de pescaria de uns amigos.
- Quando criança - continuou o funcionário - depois que meu pai se desentendeu com os irmãos dele a gente foi morar numa casa bem simples que estava desocupada. Meu pai colocou forro, soalho e fez outras reformas. Os parentes dele diziam que ele era o Batman, sabe o Batman, o cavaleiro das trevas? Falavam assim porque, segundo eles, meu pai, quando brigava, batia muito. Ele era o Batman e eu o Robin. Sabe aqueles dos gibis?
- É claro que sei. Eu colecionava gibis e trocava os repetidos, antes do início das sessões da tarde, nos cinemas naquela época.
- Então, numa ocasião - continuou o meu mais recente confidente - um dos meus tios me convidou para passear de caminhão. Ele me disse que eu deveria ir na carroceria, que era de madeira. Eu tinha, acho que uns 10 ou 11 anos. Logo que subi na carroceria onde ia de pé e sozinho, vi um pano acetinado preto, jogado num dos cantos. Era uma espécie de capa. Sabe aquela do Robin?
- Sim sei.
- Então... Coloquei ela na costa e amarrei as duas pontas no pescoço. Ela tremulava com o movimento do caminhão. Ficava até bacana. Quando passamos perto da Rua do Porto, onde havia um grupo de pessoas, algumas delas gritaram "ei, mascarado!!!"; isso me deixou bem, mas bem chateado mesmo.
Eu percebi, naquele momento que o cigarro do meu interlocutor já havia chegado ao limite, quando então ele acendeu outro e continuou:
- Depois que a gente mudou para aquela casa que foi reformada por meu pai, logo em seguida uma outra família veio morar na vizinhança. O casal tinha quatro filhos. Três meninas e um menino. Eram todos ainda muito crianças. Mas fizemos amizade e eu ia mais na casa deles do que eles vinham na minha. Numa tarde, não sei porque (acho que por excitação, sabe... Tesão mesmo?) eu convidei uma delas pra brincar de médico. Ela ficou na dúvida. Então eu expliquei que ela seria a paciente e eu o doutor que a examinaria. Ela teria que tirar a roupa; só assim a brincadeira daria certo. A menina ao invés de me dar uma resposta foi consultar a irmã mais nova. Esta, por sua vez, resolveu perguntar para a mais velha. Se ela permitisse, ai sim, então a gente brincaria.
Eu estapeava os mosquitos quando então o funcionário afastado, por causa do ciático inflamado, continuou:
- A irmã mais velha, olhando-me de cima pra baixo, bem desconfiada e com certa zanga, chamou todo mundo e atraindo-nos para defronte a escada que ficava bem na frente do quarto de dormir dos pais dela, sentar-se num dos degraus e, com ar sério de autoridade, ouvir minhas explicações, sobre a brincadeira, disse que não permitiria que isso acontecesse. Mas de jeito nenhum. Eu fiquei muito chocado, contrariado, com cara de tacho. Bom, passou bastante tempo, até que recebi na minha casa a visita do meu coleguinha, irmão das meninas. Ele me convidava pra ir ao rancho de pescarias junto com o pai dele. A gente tinha que sair bem cedo. E foi isso mesmo o que aconteceu. Não me lembro se fomos de ônibus. Mas acho que percorremos uma parte de ônibus e outra, nós fizemos a pé. Quando chegamos lá e quando o paizão abriu a porta do digamos, barraco, o odor era muito desagradável. Ele então abriu as janelas e o clima melhorou. Bom, quando a noitinha vinha chegando ele resolveu fazer a janta. Para isso deveria lavar alguns objetos. Sabe aquela tralha de cozinha? Ele pegou uma frigideira, que continha resíduos de óleo e peixes, chamando-me até a escada que ficava na margem do rio, e sentando-se num dos degraus, pôs-se a, ostensivamente, esfregar limão no recipiente. Logo depois pegando areia do barranco passou a arear a frigideira. Sabe, foi a ênfase que ele pôs nos gestos que me deixou com a pulga atrás da orelha. Quando a noite chegou, o paizão chamou-nos, eu e o filho dele, pra frente da porta que dava pro terreiro pelo qual se devia passar pra chegar às margens do rio. Havia ali um bambuzal. Ele pegou uma vara grande, fina, bem comprida, e a sacudindo com força, fez com que os morcegos, que voavam por ali, se chocassem contra ela. Um dos morcegos, filhotinho ainda, caiu aos nossos pés. Ele então pegou, pela ponta da asa, o bichinho morto e mostrando-nos disse: "Está vendo como é?" Você sabe, eu sou bem retardado, demoro muito para entender as coisas, pra ligar lé com lé, cré com cré. Entende? Eu não imaginava o que o pai fera estava querendo dizer com aquilo tudo. Naquela noite, depois de tomar um café super forte, acho que coado na cueca do meu coleguinha, não dormi até o dia seguinte. Não sei, não tenho certeza, mas acho que foi naquela madrugada que começaram as minhas dores de cabeça e a insônia crônicas.
- Mas agora você conseguiu sarar da insônia? Está curado disso? - perguntei me preparando para voltar para casa.
- É claro que hoje eu durmo normalmente. Não sofro mais por causa disso. Agora o que me incomoda é esse nervo ciático que não me dá trégua.
- Um dia, quem sabe, quando você sarar, poderá andar bem e até correr assim com eu faço hoje - disse-lhe.
- É verdade amigo. Tenho que parar como cigarro e a pinga. Não parece, mas é a "marvada" que me atrapalha - revelou ele.
Cansado mas satisfeito, levantei-me e despedindo-me do meu mais novo colega, contador de histórias, fui direto para casa, onde um banho bem quentinho me aguardava.
A menina aproximando--se lentamente do leito de morte, da velhinha querida e, vendo inserido, numa das narinas dela, aquele longo tubo fino de borracha, que saia de um orifício da parede, acima da cabeceira da cama, sentiu um forte desejo de saber o que era.
- Olha, não mexa nessa cânula, que é oxigênio, ouviu? E não faça barulho se não você vai acordá-la. - decretou a enfermeira, que acabava de chegar, depois de saber que a paciente, sob seus cuidados, recebia a visita de uma criança.
A guria, com a experiência que lhe proporcionava os nove anos de vida, nada respondeu.
Quando ficou só, a neta percebeu que a avó abriu os olhos dirigindo-lhe em seguida, o olhar que expressava serenidade.
- Oi vó. - disse timidamente a garota, cujas mãos estavam geladas.
- Oi, bem. Você por aqui? Cadê sua mãe?
- Ela está lá na portaria do hospital, conversando com a mulher do escritório. A senhora melhorou?
- Estou bem. Eu me preparo agora para o fim da viagem, a grande viagem.
- Como assim vó? A senhora vai viajar? Pra onde? - quis saber a jovem sentindo alguma alegria.
- A vida da gente é quase igual a uma viagem, às vezes, longa, outras vezes, bem curta. Sabe... Tem o ponto de partida, o transcurso e depois o fim, a chegada.
Sem poder compreender o que dizia a avó, a menina calou-se entristecida.
- Você sabia que quando nascemos todos os nossos entes queridos riem de satisfação, e só a gente chora?
Espantada, a jovenzinha fixou o olhar, na face tranquila da idosa.
- Olha meu bem... Viva a vida de um jeito que, quando você morrer, todos os que te amam chorem, e só você sorria. Entende?
Percebendo que a avó fechou novamente os olhos e, ouvindo a sororoca que principiava a menina com medo, deu um passo pra trás.
A mocinha sentiu e voltou-se assustada, quando alguém lhe tocou, levemente, o ombro direito.
- Vamos embora. Não podemos fazer mais nada. - disse-lhe a mãe, com a voz num tom baixo e bem triste.
Depois de fecharem, com muito cuidado, a porta do quarto, mãe e filha caminharam, devagar e juntas, pelos gélidos corredores vazios do hospital, em direção à saída ensolarada.
Ao trafegarem pelo pátio, passaram por um chafariz, ornado com dois peixes brancos de mármore, e donde jorrava também, para cima, alguns fiozinhos de água.
No tanque, a transparência da água deixava ver os três pequenos peixes vermelhos, que serpenteavam submersos.
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