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O zênite e o nadir

por Fernando Zocca, em 07.08.09

 

                       - Então tá bom. Vai tomando conta do trecho. Mas não deixa de pagar o IPTU e os outros encargos. E olha, vê se para um pouco com o cigarro. Quando vier aquela bufunfa que todos esperamos, me avisa. Falou?
                        Van de Oliveira desligou o telefone, guardou-o no bolso da camisa, trocou da terceira para a quarta marcha, acentuando a pressão no acelerador, sem poder, entretanto reprimir as lembranças que  teimavam em lhe reaparecer.
                        A mulher tinha alguma dificuldade para manter qualquer conversação por quinze ou vinte minutos, sem que se deixasse levar pelas ondas dos pitis abrasadores lançados contra aqueles possíveis interlocutores desavisados.
                        O que era aquilo? O tal “pavio curto” não seria mesmo, talvez, algum conceito que supervalorizava o “eu próprio” e a desconsideração dos demais, entranhado lá no fundo d´alma?
                        Grogue não podia deixar de crer que os tormentos todos eram resultados de uma base narcisista muito espessa. Quem poderia negar?
                        Nem mesmo as samambaias, as plantas ornamentais, os vasos e o lidar com a terra, o xaxim, teriam minimizado um pouco aqueles procederes tão crispados? .
                        Não faltaria alguma humildade no agir daquela senhora, que lhe permitisse achegar-se com suavidade aos demais, usando com eles alguma delicadeza?
                        No trânsito em que se achava Van Grogue ouvia ainda o rádio do qual saia baixinho uma canção do Roberto. O devaneio fazia com que ele usasse menos força no acelerador.
                        - Sai da frente retardado! Tá dormindo vagabundo? – o motorista do Santana passara tão rápido por Grogue que ele só pôde ver a silhueta da mulher que, sentada no banco do carona, olhando para trás, fazia-lhe gestos mostrando-lhe o dedo médio da mão esquerda.
                        A manobra temerária daquele avoado motorista do Santana fez com que ele batesse na lateral traseira esquerda de um Scort azul que não trafegava com a mesma velocidade. Buzinas e impropérios aos gritos foram lançados pelas janelas.
                        - Parece que quanto mais se reza, mais o demônio aparece. – murmurou Van desligando o som.
                        A agitação do quotidiano, a insegurança com relação ao futuro e a educação frágil proporcionavam aquelas angústias todas e, aqueles sufocos que destrambelhavam quem estivesse na frente. Faltava um pouco de contenção.
                        Ao olhar para o retrovisor, aquela mecha antiga de cabelos crespos caiu-lhe nos olhos. Não adiantava fazê-la retornar sobre a orelha. Lá vinha ela de novo a encobrir-lhe a visão. Definitivamente chegara a hora de buscar o cabeleireiro.
                        Antes de estacionar defronte ao salão onde daria “um trato” no visual Grogue ligou o rádio novamente. O noticiário informava sobre as derrotas do Corinthians e do Flamengo.
                        “Era assim mesmo” – pensou Van. “A vida era tal e qual uma grande roda gigante. Uma roda viva, que ao girar levava seus diversos pontos aos extremos, tanto ao mais elevado quanto ao mais baixo. Eram o zênite e o nadir. O céu e o inferno. Sempre foi assim e sempre será”.
                         Ao entrar no salão Grogue murmurou:
                        - Não existe mesmo, nada de novo, debaixo do sol.
 
 
 
 
Fernando Zocca
 
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publicado às 02:38

A Fita Métrica

por Fernando Zocca, em 24.07.09

 

Van Grogue, naquela manhã de quinta-feira, sob a marquise do Banco da Colônia, na praça central de Tupinambicas das Linhas, chegou arfante. Trazia um cigarro, semi-consumido, entre o indicador e o médio da mão direita. Seus olhos arregalados procuravam um lugar vazio num dos três bancos ocupados pela galera folgada.
 
O pessoal, que matraqueava despreocupado, assustou quando Grogue chegou. O silêncio pairante, no local, eliciou a expressão emitida por Van, que mandou assim, na bucha, numa chuva de perdigotos:
 
- Vocês estão pensando que arma de destruição de massa, é um gordinho comedor de pizzas?
 
Em qualquer outra localidade do terceiro mundo, aquilo poderia ser interpretado como ato hostil de alguém maltratando um grupo inofensivo e brincalhão. Mas estávamos em Tupinambicas das Linhas, um trecho do universo conhecido por concentrar a maior quantidade de pirados jamais vista, durante toda a história da humanidade, sobre a face da terra. Por isso, e também por ser a figura conhecida, ninguém deu muita bola.
 
Mas Van Grogue era daqueles que confundia nas novelas a personagem com o ator. Misturava também, o infeliz, na literatura, as estações pensando sempre que os escritores escreviam sobre ele nos jornais ou falavam mal da sua terra, nos programas radiofônicos. Ora, os menos burros sabiam que aquilo era manifestação duma das facetas da paranóia. Mas os espertos e safados, procuravam botar lenha na fogueira, quando o provocavam, dizendo que esse ou aquele fulano falou ou escreveu algo sobre ele de forma disfarçada.
 
Um dos presentes, notando o rosto afogueado do Grogue, perguntou-lhe:
 
- Tá nervoso Van? Vai pescar!
 
 Van Grogue jogou a bituca para trás, sobre o ombro direito, não se importando, se poderia atingir alguém ou não, e então respondeu:
 
- Só se for pescar bosta! Esse riacho tá tão poluído que dá até vergonha, só de falar.
 
Alguém, lá na ponta direita da turma, lançou outro assunto na roda:
 
 - Tupinambicas das Linhas cresceu demais! Acho que a cidade já tem uns três mil habitantes! Está insuportável agüentar esse movimento!
 
- Realmente! É muito esquisita essa terra. Vocês não souberam que a professora da escolinha, foi pega fazendo bobagem com um moleque de 12 anos? Minha nossa! Deu o maior sururu!
 
Chuma, que estava de orelha em pé, arrematou:
 
- A tarada é casada com o Banja. Ocês não se lembram dele? Foi ele quem trouxe um museu de cera, montado num ônibus enorme, e exposto aqui na praça, já faz algum tempo. Então... Havia até uma figura de toureiro. O volume da calça dele dava a idéia de que tinha um documento forçudo. Essa tal de professora quis ver e, pensando que estava sozinha, no ambiente, abaixou a calça do boneco. Ela queria, porque queria, ver o tal do pipi de cera. Rapaz! Deu um cu-de-boi dos infernos. Se o Banja a deixar, pode até haver casamento entre ela o moleque.
 
Clique Douglas, que se mantinha alheio à prosa, resolveu dar seu palpite:
 
- Tudo degenerado! Isso é uma vergonha pra nação brasileira! Essa mulher, com 45 anos... mas será o impossível?"
 
Nesse momento, todos falavam ao mesmo tempo, quando uma magricela, baixinha, parecida com uma lagartixa doida, passou pelo grupo. As canelas finas denotavam que o design fora projetado pra locomoção sentada, na poltrona dos automóveis.
 
A encardida bateu a cinza do cigarro, na direção ao aglomerado, num gesto de desprezo, como se dissesse: “Bando de carniça! Gente ruim! Pancadas!"
 
Nesse momento um carro forte, trazendo a bufunfa abastecedora dos cofres do banco, estacionou perto da turma. O motorista não desligou o motor. A fumaça produzida irritou a galera, que se afastando, criticava, malhando o péssimo sistema econômico nacional.
 
 
Fernando Zocca.
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