Aníbal depois que chegava em casa, vindo da roça, onde passava a maior parte do dia cortando cana, tomava banho e arreava o burrão, atrelando nele a charrete, usada para comparecer ao bar do Maçarico.
Isso era o que comummente acontecia. Pois foi naquela tarde de terça-feira que Aníbal, cansado da lida no eito, chegou à choupana habitada por ele, a mulher, e os dois filhos.
O homem vinha nervoso, exausto, fedido, mal humorado e ansioso pra beber, junto com os companheiros, o primeiro gole de pinga num dos botecos da cidade.
- Cadê a canequinha pra tomar o banho? – gritou ele, cheio de ódio, à Murtinha. A mulher temerosa com os espancamentos habituais olhou para a porta do barraco; queria-a desimpedida, para no caso de algum influxo de piti virulento, acometer o marido, pudesse ela safar-se com sucesso.
- Não sei. Deve estar perto do poço. – respondeu ela parada defronte ao fogão à lenha, onde enxugava as mãos no avental amarrado na cintura.
- O Nelsinho brincava com a caneca lá perto da fossa. Será que não está lá? – completou Murtinha cheia de boa vontade.
- Na fossa? Mas esse moleque quer mesmo levar uma surra! Será que não aprende? – Aníbal já estava sem camisa, sem as botinas e de calção, queria lavar-se.
Depois que ele vestiu os chinelos, saiu em direção ao local por eles chamado banheiro. Na verdade o chuveiro não passava de uma lata cheia d´água fria, antes retirada do poço, mantida suspensa num poste e, inclinada ao ser puxada por uma cordinha, deixava cair o líquido sobre o banhista. Uma bacia posta sob os pés do usuário, reservava a água que depois era reutilizada para o enxágue com a caneca.
Aníbal lavou-se apressadamente, enxugou-se e de volta pra casa, vestiu-se aproveitando a privacidade relativa do quarto. A casa não tinha forro e as paredes chegando até certa altura, não vedavam completamente o cômodo. Permanecia um espaço grande do limite superior das paredes até o madeiramento que sustentava as telhas.
Não eram raros os momentos de amor entre Aníbal e Murtinha, cujos gemidos eram ouvidos pelos filhos, deitados no aposento contíguo.
Mas naquela terça-feira, com uma vontade incontrolável de beber a sua pinga necessária Aníbal, já vestido mandou laçar o burro que pastava na redondeza. Ele então preparando os arreios e a charrete, atrelou-os no animal que ruminava.
O lavrador pegou aquele seu rádio enorme e ligando a fiação numa bateria de automóvel mantida no assoalho da viatura, acionou-o podendo ouvir, naquele momento, a história do menino da porteira, cantada pelos violeiros famosos.
Ajeitando o chapéu de caubói no alto da cabeça, por sobre os cabelos que embranqueciam, e espancando o burro com um açoite, pôs-se o Aníbal a caminho da sua mais nova e esperada aventura etílica.
Momentos antes de sair da propriedade, de passar por seus limites, antes mesmo de chegar ao portão, ele parou e voltando-se pra trás gritou:
- Mulher! Ô mulher: não esquece de dar painço pros periquitos! Você ouviu criatura?
Murtinha apareceu à porta da cozinha e acenando pro marido, propiciou a ele a despreocupação que precisava, para beber sem atropelos.
Ao chegar ao bar do Maçarico Aníbal encontrou Van Grogue que sentado numa mesa de canto, lia a seção de esportes do jornal tupinambiquense.
- Ué, mas não houve coleta de lixo hoje por aqui? – perguntou o cortador de cana pro Maçarico, depois de apontar com o queixo o bêbado leitor.
Maçarico sabia que os dois não se davam. Primeiro porque Van Grogue era muito mais novo que Aníbal, segundo porque este não era letrado o que dificultava a compreensão dos ditos pelo primeiro.
Por ser incapaz de entender o que dizia Grogue, Aníbal considerava-o louco. Era o jeito que ele usava para manter a sua autoestima inalterada, geralmente abalada pelos discursos do homem, sabedor de tudo o que publicavam os jornais.
Maçarico abriu uma cerveja servindo o lavrador. E querendo ajudar disse:
- Eu também não tive tempo de aprender a leitura. Precisei trabalhar cedo. Meu pai cortava cana. Minha sorte foi que minha tia veio de São Paulo e me levou pra casa dela onde aprendi o bê-á-bá.
- E se não tivesse aprendido, hoje você seria babá de criança retardada, com certeza. – arrematou Aníbal para o espanto do Van Grogue que se desconectou da leitura.
- Ora, ora, mas vejam quem está aqui. O famoso Aníbal, o homem que gosta de caçar e prender periquitos. Você ainda está vivo criatura? O que sucede? – Grogue com a voz pastosa de quem já bebera a cota do dia, levantava-se para se achegar ao carroceiro.
Aníbal evitando qualquer contato com aquela figura detestável, pediu ao Maçarico que lhe vendesse um garrafão de pinga. Depois de pagar a mamãe-sacode e a cerveja, que deixou por terminar, ele saiu dizendo:
- Antes beber sozinho a baronesa do que a cerveja gelada, em má companhia.
Fernando Zocca.
Aníbal, a bichinha, era analfabeta. Ela nascera no meio do mato e não pudera aprender a ler nem escrever. Mas não foi por isso que deixou de trabalhar. Muito pelo contrário, Aníbal desenvolveu uma enorme capacidade para cortar cana tendo, na adolescência, conseguido um emprego numa fazenda oligárquica de Tupinambicas das Linhas.
A gazela era alta, gorda, bastante grosseira e gostava de castrar porcos e cães na pancada. Suas mãos enormes, quando seguravam uma criança, faziam os pais temerem pela saúde do infante.
Depois que se tornou adolescente Aníbal passou a gostar de charretes e quando não tinha ainda os animais que as puxasse, reforçava seus músculos puxando-as ele mesmo, pelas estradas empoeiradas da periferia da cidade.
Quando chegou à velhice achava que podia controlar as mentes das pessoas e, em transes, imaginava comandar os moradores do bairro. Apesar de ter muitos parentes avessos ao trabalho, ele não se incomodava tanto com isso. Por não ter mais onde gastar os proventos da aposentadoria que recebia, abastecia a casa dos vadios, facilitando a eles as ações maldosas nos quarteirões.
Com a idade que chegava seus juízos já não correspondiam à realidade e não era raro aparecer, aos encontros marcados, depois de ter eles há muito terminado.
O analfabetismo fazia dele um bocó impotente para saber as verdades contidas nos livros dos doutores que ele sempre via nas estantes de longe. Apesar da curiosidade que o movia a folhear um ou outro impresso, detinha-o logo o desalento por nada entender.
Teimoso feito uma mula chucra, Aníbal gostava de ver prevalecer as suas opiniões ameaçando aqueles que ousavam discordar. “Um burro” diziam dele as pessoas depois que delas se afastava o mandão.
Quando percebia estar sua autoestima baixa, por chateações causadas pela surdez, ou cegueira senil, ele apressava-se em comprar uma paçoca ou cocada doando-as aos afilhados, amontoados no cortiço catinguento, que sustentava.
Diziam que Aníbal era cruel. Na verdade ele fora bêbado e tivera o privilégio de ser um dos primeiros pacientes a inaugurar a clinica psiquiátrica de Tupinambicas das Linhas.
A Clínica de Repouso BemBom de propriedade de alguns industriais tupinambiquences, ficou conhecida como a casa que mais se destacava na recuperação dos bebuns da região. Depois de ter permanecido por longos meses sob a custódia dos enfermeiros rígidos, Aníbal concordou que seria mais confortável manter-se sóbrio. Doía menos.
Como era aposentado e não tendo o que fazer com o dinheiro que recebia, além de sustentar os vagabundos do cortiço catinguento, ele comprava, reformava e vendia charretes, empregando o seu tempo no que ele achava ser útil.
As deficiências sensoriais faziam do infeliz, a cada dia que passava, um velho tolo que julgava poder punir aqueles a quem antipatizava, com as maldades nunca dantes imaginadas, nas plagas da cidade abandonada.
Por dizerem ser o Jarbas testudo caquético energúmeno, uma das vítimas preferidas pelo Van Grogue, punha na sua ingenuidade, o vovô gazela, suas forças objetivando gorar o bem estar do pingueiro.
O vovô antílope, usando o tempo que lhe sobrava, passeava pela cidade distribuindo balinhas e pregando razões contra a permanência do ébrio Grogue nas plagas tupinambiquences.
Aníbal o ruminante, chegava aos oitenta anos com facilidade; apesar das limitações impostas pela surdez e cegueira, tinha ainda muita lenha pra queimar. Era o que ele achava.
Fernando Zocca.
Leia O Telescópio.
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