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O ARMÁRIO PRATA

por Fernando Zocca, em 18.11.10




Pitirim Zorror acordou, naquela manhã de segunda-feira, com uma dor de cabeça horrível. Seu companheiro de quarto, ali no famoso Spa Naka, roncara a noite inteira. Apesar do adiantado da hora, aquele gogó ainda estrondeava.

 

Ambos internaram-se na clínica objetivando perder peso e livrar-se dos incômodos da intoxicação causada pelo uso diário do álcool. Pitirim arrancou o travesseiro debaixo da cabeça pesada e lançou-o contra a fonte insuportável de ruídos.

 

Ernesto Mail assustou-se com o impacto. Atordoado, ele pode ouvir o trinado dos pássaros, àquela hora da manhã. Nervoso ele exclamou:

 

 - Que saco! Não se pode mais, nem ao menos, dormir direito nesse lugar.

 

Um odor de café coado naquele momento evolava no ambiente, aguçando a fome nos demais residentes.

Pitirim percebeu suas mãos trêmulas. Ele sabia que só as teria firmes, depois duma talagada generosa. E. Mail começou a falar:

 

- Eu notava que os vizinhos da minha casa conversavam, sobre mim, com os vizinhos daquele boteco, lá no centro. Eu tenho certeza que eles todos comentavam sobre minha... minha... nobre... pessoa, com os vizinhos da construtora onde eu aparecia todas as manhãs, para trabalhar.

 

Pitirim levantou-se e foi dizendo:

 

- Já está delirando a essa hora! Você não é oceano, mas tá cheio de ondas hein, ô da psicose! Vai se levantando rápido. Aquele enfermeiro maluco vem chegando aí. Você sabe que ele não vai com a tua cara.

 

Pitirim sentiu que fora um tanto quanto seco e rude com o parceiro. No fundo sabia que Ernesto Mail tinha razão e estava certo com as suas percepções. O pessoal da seita maligna do pavão-louco não era flor que se cheirasse. Aquela gente era de morte.

 

E. Mail, tossindo, botou os pés no chão. Seus cabelos estavam desgrenhados; o rosto mal barbeado e vermelho. Em tom de cochicho ele perguntou:

 

- E a mais lindinha? Acabou?

 

Pitirim, percebendo que aquela concorrência, poria em perigo o prazer da embriaguez do dia, asseverou:

 

- Acho melhor você se cuidar. Aquela turma do pavão-louco está todinha atrás de você. Eles estão com ódio e desejam ver-te mais seco do que roçado nordestino.

 

Ambos se preparavam para descer e tomar o café matinal. Vestiam-se vagarosamente. De repente, as palmas estaladas à porta, assustaram os internos. A enfermeira Lucila Mao Mé, magra à semelhança dum frango morto, depenado e dependurado, mostrando muita irritação, esbravejava:

 

- Vamos logo, se não vocês perderão a hora do desjejum. Parece que não sei... Parece que bebem...

 

E. Mail sussurrou:

 

- Ih rapaz! É aquela louca que confunde colega com Corega. Tamos ferrados!

 

 Pitirim emendou:

 

- Essa capivara não tem carrapato com maculosa, mas pode te esquentar a cabeça. Vamos logo, ô praga de usineiro, sai da frente!

 

No refeitório, sentados um defronte ao outro, eles conversavam, entre goles compassados de café com leite. Ernesto Mail disse:

 

- Piti hoje tenho consulta com o endocrinologista. Ele pediu que eu escrevesse alguma coisa relacionada com o meu peso. Bolei essa cartinha. O que você acha?

 

Pitirim pegou o papel e mordendo um pedaço de torrada, passou a ler. O texto dizia assim:

 

"Quando era criança e já bastante gordinho, a molecada do bairro zoava-me muito durante as corridas pelo quarteirão. Eu sempre chegava por último. A gozação era geral: todos subiam na jabuticabeira e eu não podia nem ao menos passar pela segunda forquilha. Confesso a você que até mesmo as escadas conseguia descer. Eu próprio sentia compaixão por minha pessoa. Vá vendo... Mas do rio não é bom falar. Todos chegavam correndo às margens e, aos saltos, entravam n´ água. Saíam nadando, enquanto eu afundava igual a martelo."

 

"Diante desses fatos fui ficando assim meio caseiro, inferiorizado. Aquele senso de dessemelhança que se apossa do fofinho que vive num grupo de magros, obrigou-me a desenvolver a inteligência agressiva e a astúcia exuberante. Eles não contariam com a minha astúcia."

 

"Passei a escrever poesia quando estava supergamado e não tinha coragem para declarar meu amor."

 

"Os dias sucederam-se e eu ficava cada vez mais velho. Comecei a fumar. Pensei que fosse emagrecer com o tal hábito. Mas que nada. A adiposidade em meu corpo aumentou de tal forma que eu já não conseguia mais ver o biribiguá. Mas também pelo tamanho com que ele se apresentava, seria melhor que eu não me lembrasse da sua existência. Era humilhante."

 

"Reuni minhas poesias em alguns livrinhos xerocopiados e passei a oferecer às pessoas. Houve certa aceitação. Pelo menos em tais contatos sociais não haveria tantos rebaixamentos. Eles (os contatos sociais) se davam sob assuntos intelectuais e não por desempenhos físicos. Até aí tudo bem. Não encontrei nenhum concorrente que me pudesse fazer sombra."

 

"Reinei só durante alguns anos em nossa comunidade, sendo conhecido como Ernesto Mail Catão, o poeta pimpão."

 

"Mas você sabe como é: precisamos fazer algo de útil e remunerado durante essa nossa passagem pela terra. Se não, como sobreviveremos, não é verdade?"

 

"Ingressei então, pelo poder e graça dos grandes padrinhos, e por que não dizer, por minha capacidade intrínseca também, no serviço público municipal."

 

"Meu salário era ruim. Era tão minguado que me impedia de ver, e não via mesmo, outra alternativa para reforçar o orçamento, do que a da aceitação de bolas."

 

"A corrupção a que me submetia, quero deixar bem claro, não era prejudicial ao empregador a ponto de o fazer instalar uma CPI e me defenestrar do cargo. Tudo era muito leve e sutil. Espirituosamente sutil."

 

"Os anos passaram e agora, curto o diabetes, responsável pela minha disfunção erétil."

 

"Estou careca, gordo e com o bimbo mole. Mas escrevo minhas poesias. Gosto ainda de contar mentiras e, às ocultas, assoprar os defeitos alheios. Apesar dos laranjas e larápios viverem a dizer que não enxergo a trave no olho próprio."

 

"Nada mal para quem era um gordinho com nádegas flácidas e sem futuro. Não é verdade?"

 

Pitirim Zorror terminou a leitura e tossindo levemente disse:

 

- É bastante significativo. Tem conteúdo. O doutor vai entender que você era inferior e que por isso, para compensar, fazia essa poetagem toda. Seu caso assemelha-se aos demais integrantes dessas seitas malignas. Para ser aceito nelas é preciso estar separado do cônjuge, ser tabagista, obeso, alcoólatra, analfabeto, adolescente ou idiota. As maldades que praticam são compensações pela inferioridade material. Ajudam manter a autoestima.

 

Enquanto falava Pitirim não percebeu a aproximação de um novo interno. Era um sujeito alto, pelancudo, usava bigodes brancos e sujos; seus óculos estavam embaçados. Ele caminhava arrastando a perna direita. Calçava pantufas verdes e sua blusa era azul. O adoentado batia palmas e cantarolava: "É na palma da bota/ É na sola da mão..."

 

Ernesto e Pitirim se entreolharam e sem dizer palavra, saíram correndo a caminho do quarto. Lá no canto, no fundo do armário prata, estavam escondidas as garrafas de filha-de-senhor-de-engenho, néctares muletas que os fariam aguentar as chatices daquilo tudo.

 

Texto publicado originalmente em 14/10/2005 no site usinadeletras.

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publicado às 12:49

Maltratando o gambá

por Fernando Zocca, em 27.10.09

 

            Ado Henrique era um sujeito alto, magro, louro, e branquíssimo que amava churrascos temperados só com sal grosso. Ele chegara a Tupinambicas das Linhas de passagem para a capital, mas gostara tanto do lugar que resolveu residir na cidade.
            Depois de mais ou menos trinta dias perambulando pra lá e pra cá, em busca de uma atividade econômica que o pudesse sustentar, ele achou que se se estabelecesse com um bar poderia viver muito bem.
            E foi pensando em adquirir um boteco já tradicional que Ado Henrique entrou, naquela tarde quente de segunda-feira, no bar do Bafão.
            Na mesa pequena que ficava sempre encostada no canto esquerdo, próximo  da porta frontal, estavam Charles mais conhecido como “boca de porco”, que nunca tirava aquela ressequida camisa regata verde-limão, encardida pela graxa e resíduos de tinta; o carroceiro Edbar B. Túrico, que aproveitando a calmaria da hora deixou na calçada a carroça que puxava, para tomar aquela gelada refrescante e, Van Grogue, o mais conhecido biriteiro tupinambiquence. 
            Quando Ado Henrique entrou olhou logo para aqueles prováveis futuros fregueses cumprimentando-os vigorosamente. Era com se um capitão-do-mato, feitor de fazenda monarquista ou general nazista adentrasse ao ambiente para tomar as providências rigorosas contra algumas supostas irregularidades ocorrentes.
            - Boa tarde, senhores! – o tom formal e severo assustou os pingueiros amolecidos, mas não os impediu de responder educadamente.
            Pigarreando Ado Henrique aproximou-se de Bafão, que como sempre, asseava o balcão, passando sobre ele uma toalha alva. O recém-chegado sinalizou ao barman aproximando o indicador do polegar a uma distância que o remetesse à desejada dose de pinga, mandando também com voz solene:
            - E uma cerveja bem gelada!
            O burburinho que havia no ambiente, momentos antes da entrada do ilustre cavalheiro, cessou ante a visão da figura. Em silêncio os copos eram agora levados aos lábios, ao mesmo tempo em que os bebedores observavam as cenas decorrentes.
            Ado Henrique depois de emborcar, de uma só vez, a dose reforçada da “três martelos”, agarrou a garrafa de cerveja pelo gargalo e, ajeitando o copo na outra mão procurou assentar-se à mesa próxima do pessoal que ali estava.
            - Pois ora, veja que Tupinambicas das Linhas é mesmo grandiosa, enorme. Há trabalho para todos que a procuram. Não é verdade? Como é que se chama mesmo o prefeitinho daqui? É Nero? – o atordoamento de Ado Henrique, provocado pela ingesta do álcool, tornava-se já perceptível ao grupo, simultaneamente em que via também o rosto do forasteiro avermelhando-se.
            - Hum... – disse Van Grogue em voz baixa – Pelo jeito a coisa vai desandar.
            Edbar B. Túrico dobrou-se todo sobre o ventre esticando o pescoço para observar a carroça parada ali perto da porta. Ele pensou que se tivesse de sair correndo, não se importaria muito com a carga de papelão que ajuntara.
            Charles tirou do bolso da bermuda o maço de cigarros e, com o isqueiro verde ornado com a figura de uma arara, acendeu um deles,  murmurando algo em tom grave.
               Diziam, os maus beiços pequenos da Vila, que Charles mais parecia um sapo banguela arfante. Mas quem o conhecia sabia ser ele um sujeito tão forte quanto um jumento. E bem burro também.
            Van Grogue tentando manter o clima cordial respondeu, num tom suave, a pergunta do forasteiro:
            - O prefeito daqui chama-se Jarbas. Ele é bem caquético, testudo, gabiru e ratazana de bueiro fedido.
            Ado Henrique então, já não conseguindo distinguir no grupo, aquele que falava, erguendo um copo cheio de cerveja, fez outras altas indagações:
            - É verdade que o presidente da Câmara Municipal já passou mais de vinte e cinco anos no cargo? Por que só ele é reeleito e mais ninguém consegue? Qual é o segredo dessa... Múmia? Como ela consegue isso? É difícil acreditar na existência de cargos municipais eletivos vitalícios. Mas ela é uma prova cabal disso. Qual é mesmo o nome da figura?
            Van Grogue percebeu que apesar das perguntas não terem sido direcionadas a alguém específico, achou que poderia respondê-las a contento e então disparou:
            - O presidente da Câmara Municipal é o José Lagartto, mais conhecido como Zé Lagartto das quebradas. Faz um século que ele é vereador e não larga o “osso” de jeito nenhum. A “carniça fedorenta” não sabe fazer outra coisa. Nunca soube.
            Van Grogue percebeu que Ado Henrique não tinha mais condições físicas para manter a conversação. O homem já babava na camisa vermelha.
            De repente um gambá assustado entrou correndo bar adentro atemorizando a todos os que ali estavam. Então assim como que num passe de mágica, Ado que dormitava sobre os braços dobrados na mesa, acordou irado. O ébrio ao levantar-se com muita rapidez derrubou a cadeira,  manifestando-se em seguida aos berros:
            - Um gambá? Misericórdia! Um maldito gambá? Um gambá sujo aqui dentro? Eu não acredito! – esgoelando isso e segurando a garrafa pelo gargalo, Aldo Henrique corria pelo salão ralhando com todos, tentando matar o animal.
            - Calma, moço. É só um bichinho que saiu ali do campinho de futebol da molecada. Ele já foi embora. Pode ficar sossegado. Não faz mal a ninguém. É um bicho bom. Um bicho gente fina. Pode confiar. – lecionou Bafão preocupado em receber o pagamento das bebidas.
            Aldo Henrique enfiou as mãos nos bolsos a procura do dinheiro. Ele cambaleava, mas depois de localizar algumas notas, jogou-as sobre o balcão. Não esperou o troco saindo logo em seguida com destino ignorado.
            Van Grogue olhou para os amigos boquiabertos e depois de beber o ultimo gole de cerveja, daquela tarde, passou as mãos sobre os cabelos bastos saindo em seguida.
            - Eu não agüento mais Tupinambicas das Linhas – disse ele ao entrar no carro com o qual se mandou para o bairro Floresta.
 
Fernando Zocca.  
  
               
 
 
Visite Piracicaba.
 
             

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publicado às 10:30


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