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Insuflando as Velas

por Fernando Zocca, em 09.04.11


 

                    - A impressão que a gente tem é que a maioria dos políticos possui muita habilidade em resolver só seus problemas pessoais. Nada mais que isso. – disse Wilson Regente depois de se sentar ao lado de Janaina na praia deserta.

                    A moça, trinta anos mais jovem do que ele, acomodada sobre a canga colorida, alisava os cabelos úmidos. Ela chegara mais cedo ao local do encontro, combinado na noite anterior.

                    - E você acha que eles deveriam resolver os problemas de quem mais? – inquiriu ela passando, lentamente, protetor solar nos braços.

                    Regente notou que o céu estava nublado e nem o mormaço era suficiente para avermelhar a pele.

                    - O vento está bem chato. – concluiu o músico, cofiando a barba longa, depois de ajeitar os cabelos que lhe cobriam os ombros.

                    - Já fazem muita coisa se conseguem resolver os próprios problemas. – Janaina percebeu o desconforto dos lábios ressecados, umedecendo-os com a língua.

                    - A conciliação, às vezes, fica difícil. A gente envelhece e não consegue demonstrar simpatia, arrependimento ou dar qualquer outro sinal de que não deseja tanta guerra.

                    - Sabe o que eu acho? As pessoas próximas de quem litiga assim, por tanto tempo, não são tão hábeis nessas questões de apaziguamento. – reforçou ela.

                    - Eu estou bem arrependido de ter socado a mesa do cara. Você sabe: achei que era muita exploração. A gente se dedica tanto nas composições e depois vem esse desprezo do produtor. É foda! Você viu, não é? Investi o valor de um carro importado no CD e o que a gente tem de volta?

                    - Cara! Não é nada disso. Você está buscando simpatia, reconhecimento, algo de fora, de outro alguém. Não é por aí. – indignou-se Janaina.

                    - Na verdade estou me doando, me entregando, aderindo ao seu progresso, sucesso, insuflando a sua vela e não espero nada de volta. É assim que deve ser? – perguntou o amigo com alguma tristeza no semblante.

                    - Eu penso que seja assim. Haveria, por acaso, outra maneira de não vivenciar tantos tormentos?

                    Wilson aproximou-se dela enlaçando-a com os braços. O beijo ardente só foi interrompido pelo vendedor ambulante que oferecia biscoitos e água fresca.

09/04/2011.

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publicado às 14:46

Estendendo a canga

por Fernando Zocca, em 28.08.09

 

- Então é assim, você sintetiza o comissionamento recebido e depois propõe a distribuição a quem de direito. Não podemos acreditar que haja desvirtuamento daqueles princípios propostos. Existem pessoas que crêem nisso. Eles acham que haveria um desvio compensatório. Eu ligarei mais tarde pra confirmar. Mas mesmo assim acho que nada saberemos sobre a verdade. Não há provas nem jeito de flagrar o crime.
            Jorge, com lentidão, encaixou o fone no antiquado aparelho telefônico que estava sobre a mesa do escritório. O vermelho já um tanto desbotado não servia de argumento convincente que o levasse a trocar a peça. “Não sei por que você se liga tanto nessas velharias. Existem tecnologias novas no mercado e você não se interessa” – ele  recordou-se do que dissera Consuelo. A mulher vivia ao seu lado há quarenta anos.
            O homem caminhou até a cozinha quando então ouviu a voz da criança vinda do apartamento vizinho. Ela balbuciava algumas palavras dirigidas à mãe. Uma sensação esquisita apertou o peito de Jorge. “Que ela tivesse cuidado e ofertasse proteção aos filhos. Afinal, havia mães que não imaginavam a possibilidade de estarem seus pequenos, sujeitos ao ódio, que alguns adultos frustrados, não conseguiam descontar nos desafetos”.
            Depois de espremer um limão na água, que tirara da geladeira, ele voltou-se para a sala. Os móveis antigos, mas bem conservados, eram de um tempo em que as cristaleiras significavam destaque entre o pessoal da vizinhança.
            Segurando ainda o copo de limonada ele se aproximou da réplica do quadro o Grito do Ipiranga de Pedro Américo, que ornava a parede. Apesar do desbotado da figura, ela ainda mantinha os traços que lembravam aquele momento histórico.
            Vestido com seu robe-de-chambre azul pavão felpudo, ele se movimentou pela sala podendo observar a mesa estilo colonial, ainda bem conservada. Uma onda de nostalgia tomou-lhe a consciência e ele viu-se ainda criança quando o pai, no meio daqueles rascunhos, desenhos e projetos, tentava ordenar as plantas do iate que tencionava construir.
            Réguas, compassos, esquadros e lapiseiras eram as ferramentas que ele manipulava com maestria. Jorge lembrou-se de que quando o pai notava sua presença, ao lado da prancheta, dizia-lhe palavras de carinho.
            - A espera. A espera pode ser agoniante, mas inevitável.
            O homem caminhou pela sala e notou o sofá que, ao lado da janela aberta, acumulava alguma poeira vinda de fora. Com um gesto delicado ele a fechou. Era perigoso mantê-la aberta nesses tempos em que os pássaros ainda voejavam sem muita direção.
            - Já imaginou – disse ele em voz baixa – se um urubu atordoado entra por essa janela adentro despedaçando as coisas? Misericórdia!
            Num vaso pequeno Consuelo conservava a muda de acerola que desejava ver  desenvolvida no pomar da chácara. Além dessa planta havia também um arbusto de limão. A ida àquele local, quase nunca visitado, excitava-o e, sua impaciência era comunicada pelo jeito com que caminhava pisando firme no soalho, desviando-se dos móveis.
            - Olha o vizinho de baixo! Pisa leve, se não já viu né? – esgoelara Consuelo que manipulava, na lavanderia, a velha máquina de lavar roupas.
            - Mas será o Benedito? Não vejo a hora de ir para o sítio. Careço de agir com mais liberdade, sem tanto receio de ver gente que se mostra magoada por coisas insignificantes. – Jorge notava que seu rosto enrubescia.
            - Pra você escrever censura com “s” não tem problema. Mas pra essa gente cheia de “nove horas” o caso é sério. – ponderou Consuelo.
            - Tudo bem, mas não precisava fazer essa onda toda, esse estardalhaço. Por que essa “tolerância zero”? – O tom de voz de Jorge dava a impressão que ele explodiria.
            - Deixa de ser maçante, homem de Deus! Para de se preocupar à toa. Vai caminhar um pouco, respirar ar puro. Ô nego chato, seu! -  Consuelo falava ao mesmo tempo em que batia, com vigor, a calça jeans no escorredor do tanque.
            Jorge ouviu o que esperava. Ele tirou rapidamente o roupão, vestiu a bermuda preta que combinou com a camiseta vermelha e, calçando os chinelos de tiras preto e branco, saiu mais uma vez para caminhar. Ele tinha certeza que encontraria a natureza bela, do jeito que sempre fora.
 
Fernando Zocca.
 
 
 
 
 
Visite Piracicaba.
           
           

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publicado às 02:55


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