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- Van, é verdade que você viajou para Wilmington, Califórnia, nos Estados Unidos? - quis saber Ester Icca que abordava o pingueiro na feira livre semanal do bairro.
Pigarreando e ajeitando os tomates, que acabara de comprar, no saco plástico branco, Van de Oliveira respondeu:
- Veja bem, minha querida Icca: é verdade sim que fui, numa ocasião para Wilmington. Mas não na Califórnia. Originalmente meu destino seria aquele. Entretanto por ironia do destino ou malvadeza, não sei, fui parar lá no Estado de Dalawere, nordeste dos Estados Unidos.
- Carolina do Norte? - indagou Ester.
- O estado é Delawere e a cidade, Wilmington, fica na confluência dos rios Christina e Brandywine.
- Ah, mas então você deu uma entradinha no rio Christina?
- Não. Imagina. Nem cheguei perto.
- Nem passou a mão na água?
- Não, bem. Não fiz isso não.
- Mas por quê? Era muito fria? - insistiu Ester.
- Fria eu sei que era. Mas não foi por isso que deixei de passar a mão ou entrar. Na verdade eu não estava a fim. E nem podia. Você sabe, a gente não pode fazer tudo o que quer. Tudo tem um limite.
Diante do espanto de Ester Icca, Grogue continuou:
- Aquele pessoal que estava comigo começou a brigar entre si. O marido acusava a mulher de traição, e ela, por sua vez, dizia que ele era um bêbado e que a vivia espancando.
- Nossa!
- Eu me lembro que quando estávamos passeando pelas margens do Christina a mulher gritava "você é um caminhoneiro frouxo, bêbado e que só espanca sem dó nem piedade. Não reclame da galhada que eu te pus e ponho. Você sabe que eu vim da zona e lá, meu querido, a coisa é assim mesmo. No meu jogo do bicho só dá veado galheiro".
Ester Icca boquiaberta, com os olhos fixos na face do Grogue, apalpava algumas laranjas e as colocava automaticamente na sacola.
- Oi gente - cumprimentou Inês Kau aproximando-se da dupla - tudo bem com vocês?
- Ah, oi Inês. Que bom te ver. Imagina... O Grogue está falando que não entrou no rio Christina - confidenciou Icca.
- Não? Como assim? Todo mundo pensa que você entrou, foi e voltou, fez e desfez lá naquelas águas. Como pode isso?
- Essa negadinha é perversa, - respondeu Grogue - eles inventam cada uma que dá até medo.
- Ele me falava que o casal que estava com ele brigava muito entre si. O marido acusava a mulher de traição e ela, por sua vez, o acusava de agressões frequentes por causa do alcoolismo - disse Ester Icca para Inês.
- Chegou uma hora que a coisa estava tão complicada, mas tão complicada que a mulher teria jogado o cara no rio - completou Grogue.
- Como assim? A mulher jogou ele no rio, ou foi ele que se atirou no rio Christina? - inquiriu Icca.
- Na verdade ele caiu. Estava tão quente o dia que ele, esbaforido escorregou e pimba; lá se foi pra baixo. E quando tentou sair, agarrando-se no busto de um figurão (no qual havia uma placa com a palavra Bus) que havia ali na margem, derrubou o monumento que se despedaçou todo. Deu o maior bafafá. Veio polícia, perícia técnica e até processo.
- Misericórdia - admirou-se Inês.
- E depois, quando foram pegar o ônibus se assustaram ao saber que até o motorista estava ciente da história do busto - completou Grogue.
- Mas Van, é verdade que teve gente que se elegeu contando essa passagem mítica para o eleitorado? - perguntou Ester Icca.
- Teve sim. E como. Soube de um espertinho que entrou muleque na politica e já é trisavô. Envelheceu mamando no povo.
- Van, meu lindinho... Você quer bombom? - desmanchou-se toda a Icca ao ofertar a guloseima que tirara da bolsa.
- Olha, também tenho bombons pra te dar. Só que estão em casa. Você aparece depois por lá? - disse também Inês.
- De vocês, garotas lindas do meu coração, aceito tudo. Mas sem compromisso sério, entende?
É claro que elas entendiam.
Todas as manhãs agora eram assim: choradeira infindável e lamentações provocadas, no mancebo arrependido, pela visão daquele rosto mal dormido, da concubina que já tinha sido quenga.
Pois haveria acicates maiores, do que as lembranças dos tempos da gandaia, daquela sua amada, provocadas pelas visões dos seus antigos amores?
Era só saber que um daqueles homens, que um dia andaram, nas noitadas da vida, (com a agora parceira), passaria defronte a sua casa, para emergirem naquela cabecinha miúda, as manifestações do ciúme doentio e desmedido.
O finório, que chiava e chiava, achava que o seu chororô minimizava aquele mal estar, o tal sofrer que já não tinha mais fim.
Na verdade ele estava com certa razão. Mas ninguém poderia apagar da existência dos fatos, a autenticidade que o consumia. E todas as manhãs era isso: uns blá-blá-blás incansáveis e sem fim.
Tinha coisa mais chata?
A mãe do espertalhão, desacorçoada, nem se importava mais com as recomendações da vizinha que, durante as caminhadas pelo bairro, arriscava garantir ser de bom alvitre levar o inquieto a um psiquiatra.
Nem mesmo as afirmações de que a concubina já não possuía aquelas atitudes, que um dia a fizeram merecedora da hospitalidade da Maria Machadão, nos Bataclãs da vida, sossegavam o javardo.
- Mas será que com um bombom, logo depois que ele acorda o nervoso não passa? - perguntou, numa ocasião, a vizinha barriguda pra mãe do atormentado, quando a viu nervosíssima por causa da agitação da criatura.
- Imagine!!!!! Nem com pinga a goteira passa. - respondeu-lhe a mãe, que durante os passeios matinais, carregava sempre consigo um saco plástico com alguns pedaços de tijolo. Era uma espécie de simpatia que lhe ensinaram, pra afastar os azares que ela julgava perseguirem-na.
- Mas que nada minha dona. Uma temporada num hospital especializado pode resolver esse problema. - garantiu certa vez o especialista pra mamãe preocupada.
- E daí, vizinha? Decidiu o que fazer? - indagou a colega de caminhadas, depois da consulta ao médico.
- Já resolvi. - respondeu a mãe cansada de tanto sofrer. - De hoje em diante levanto a âncora e, remando, vou cumprir a determinação do doutor.
- É a democracia, né comadre?
- É. Democracia é isso.
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