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Henriqueta Fossa e Elisa Buffa conversavam na esquina:
- E aí, amiga? Sarou da ressaca? - perguntou Elisa.
- "Mardita" pinga aquela que me deram... Me fez um "mar" terrível - respondeu Henriqueta.
- Toma um chá de boldo, comadre. Você vai ver tudo melhora - consolou Elisa. E depois concluindo:
- A senhora já passou dos 82 anos. Não seria bom parar com a talzinha?
- Que nada filha... O que é que a gente vai fazer numa quiçaça dessas? Se não tem o boteco, o que a gente faz?
- Mas dona Henriqueta... E o crochê, minha nega? - provocou Elisa.
- E lá eu sou velhota de crochê? Ora faça-me o favor dona Elisa. E me dê licença que meu feijão está no fogo; parece que a panela tá bufando.
- Vai dona Henriqueta... Vai... Vai tomar... Lá na sua cozinha, conta do seu feijão.
Depois do almoço, lá pelas três horas da tarde, Henriqueta saiu de casa e foi direto ao armazém da esquina onde pretendia comprar o leite e o pão para o café da tarde.
Como não gostava de caminhar pela calçada, a velhota, alta, magra, desengonçada, que falava grosso devido a um problema na garganta, iniciou o percurso pelo meio da rua.
Enquanto caminhava um automóvel vendendo pamonha anunciava pelo alto-falante:
- Olha a pamonha, senhora dona de casa. É o legítimo creme do leite. É a pamonha de Tupinambicas das Linhas. Venha conferir minha senhora...
Henriqueta sentiu-se incomodada. Teria sido aquela funesta Elisa Fossa, a vizinha maledicente a responsável por essa gandaia toda no quarteirão? Quem é que aguentava tanta judiação?
Não teve tempo de concluir o seu raciocínio porque já tinha chegado ao armazém.
Havia um pessoal aglomerado, esperando numa fila, a vez de pagar o que comprara, no caixa.
Sentindo-se insegura Henriqueta imaginou que se estivesse na sua cidade natal, Salvador, na Bahia, estaria bem menos nervosa.
- Seu Messias, eu quero 24 pães. Me põe em dois sacos, faz o favor. E me dê também um litro de leite de caixinha. De saquinho já ando cheia.
Messias conhecia bem a figura. Olhou-a por cima dos aros dos óculos e disse:
- Ô Almeida: atende a dona Henriqueta. Que ela tem pressa.
Almeida, atrapalhado com as suas 1001 ocupações no armazém, deixou o que fazia e atendeu a freguesa dando a ela o que pedira.
Saindo com os embrulhos Henriqueta sentenciou:
- Põe tudo na minha conta, seu Messias, lindinho da vovó, que no final do mês a gente pagamos.
Messias tirou a caneta que estava equilibrada na orelha direita e anotando a despesa numa folha de papel, passou a receber o dinheiro dos demais que estavam na fila.
Na volta, caminhando pelo meio da rua Henriqueta sentiu-se obrigada a usar a calçada porque um caminhão vendendo gás de cozinha passava anunciando, tendo ao fundo a sinfonia Für Elise, do compositor alemão Beethoven, a mercadoria pelo alto-falante:
- É o gás, meu amigo, minha amiga e senhora dona de casa. Aproveite a promoção. Leve agora o seu gás e ganhe um brinde lindo.
Chateada Henriqueta chegou a sua casa. Quando se preparava para tomar o café alguém tocando, com insistência a campainha foi logo lá de fora gritando:
- Como é sua velha safada!!! Quando vai pagar os 182 reais que me deve?
Era Elisa Buffa que, acarinhando a barbicha branca de um bode velho, parada defronte ao seu portão, incomodava-a mais outra vez.
Depois de mais ou menos uma semana no Rio de Janeiro, ter assistido missas, ido à Praça da República, à praia e passeado muito de teleférico, resolvemos chegar à Lapa.
Você sabe: é um local de boêmia, bares, rodas de samba e shows dos mais variados artistas. Naquele finalzinho de tarde o Fluminense jogaria e, portanto, ao entrar no boteco, aboletei-me num daqueles banquinhos, solicitando uma Antarctica tipo litrão.
O pessoal que não estava ligado na TV conversava animadamente ao redor. Notei que havia um sujeito boa pinta, bem vestido, que trazia nos dedos, nos pulsos e no pescoço ornamentos de ouro reluzentíssimos.
Ele era acompanhado por três mulheres lindíssimas, charmosas e chiques que o paparicavam sem cessar.
Num dado momento o tal empresário puxou conversa comigo. Então ele foi dizendo:
- Esse pessoal tem muita inveja de mim. Eles me odeiam. Odeiam o meu sucesso. Mas eles não sabem que vim de baixo. Sim, meu amigo, eu vim de muito baixo. Mais pra baixo de onde vim já era o Japão. Mas estou aqui, olha. Consegue ver aquela Maserati cinza ali perto do Quartel da PM? Então... É só minha. O IPVA está quitadíssimo, o tanque cheio. Cada gata dessa que me acompanha tem uma, se não igual, pelo menos parecida. É a vida, né? Fazer o quê?
Eu, boquiaberto, não conseguia mais me concentrar nos lances do Fluminense. Só ouvia. E lá vinha história:
- Então, mano... Eu fui catador de reciclável. Manja reciclável? Quando eu era menino, de calças curtas, minha mãe punha a gente pra catar lixo. Eu puxava carroça. Aliás, puxei muita, mas muita carroça mesmo. Eu só sofria quando tava muito pesado e tinha ladeira pra subir. A gente ajuntava tudo defronte o nosso barraco, na vilinha, e depois vendia. A gente tivemos sorte. Depois que fiquei taludinho, aparecerem uns caras propondo sacanagem em troca do dinheiro. Na dúvida eu contei pra minha mãe. Eu achei que ela ia dar piti, mas que nada. Ela incentivou. Mandou que eu me virasse. Eu me virei tanto que hoje tenho três apartamentos. Um em Copacabana e outros dois na Barra. Com os aluguéis dá pra pagar umas bramas.
Nessa altura do jogo eu já estava mais prá lá de Bagdá do que de Beirute: atordoadíssimo.
A noite desceu rápido. A temperatura baixou sensivelmente. Minha mochila, que não tinha quase nada além de algumas peças de roupa, pesava toneladas.
Com muito custo busquei, nos bolsos, a nota de R$ 10 com a qual pagaria o litrão.
- Deixa aí, mano. Você é dos nossos. Essa conta é minha - disse o homem de negócios.
Agradeci a gentileza e desejando que no segundo tempo do jogo, o Fluminense consolidasse a vitória, sai em busca da madrugada.
"Do mesmo jeito que os escravos, no tempo do Império, morriam nos canaviais dos senhores de engenho, morrem hoje os cortadores de cana, nos canaviais das usinas de álcool." (Frase atribuída a E. Mail, antes de cair desacordado, no boteco da tia Cris, vitimado pelo coma diabético)
Van Grogue, já atordoado pela ingesta da água-de-briga, entrou naquela tarde de segunda-feira no bar da tia Cris. O ambiente estava às moscas. Não havia freguês e o balcão desguarnecido.
Do rádio velho, postado numa prateleira acima da pia, onde a dona lavava os copos, vibrava uma canção. Era do tempo em que Roberto Carlos andava de calças curtas na periferia de Cachoeiro de Itapemirim.
Grogue foi avançando, avançando e, sentindo necessidade de fazer xixi, resolveu ir ao banheiro. Ao fechar a porta, ouviu uma espécie de zum-zum. Eram vozes de moças que se divertiam com alguma coisa. Depois de fechar o zíper da calça, lavou as mãos e não contendo a curiosidade resolveu investigar o que era aquele auê.
Aproximou-se devagar, pé ante pé e viu quatro jovens sentadas em torno duma mesa circular. Elas falavam ao mesmo tempo e tinham seus dedos indicadores acima do fundo dum copo emborcado. Um círculo formado pelas letras do alfabeto limitava os movimentos da vasilha. Pelo que ele pode perceber, o copo movimentava-se respondendo as perguntas das meninas, parando defronte as letras, formando as palavras das respostas.
Grogue viu que não foi notado. Aproximou-se das moças. Elas faziam perguntas e o copo mexia-se dentro do círculo. Uma delas perguntou se um parente subiria na vida. Enquanto viam os movimentos do copo, Grogue achou que poderia muito bem passar por trás delas e, subindo aquela escada de madeira, entrar na casa da tia Cris, sem que elas percebessem. Resolveu arriscar. Degrau por degrau foi ascendendo. Logo depois, quando estava quase lá em cima, olhou para baixo e elas animadas viram que o copo dizia que, aquele parente de uma delas, não ficaria muito tempo nas alturas do sucesso.
Van Grogue achou que aquilo tudo era uma brincadeira sem graça e vendo que poderia enganar as moças começou a descer as escadas.
Quando passou novamente atrás delas, foi chamado para participar da brincadeira. Ele disse que não achava graça nenhuma naquilo e se afastou.
Uma das jovens disse então pra tia Cris que aquela brincadeira servia para medir a sugestionabilidade dos sujeitos.
Van Grogue entrou no salão do boteco e aguardando a proprietária, para ser servido, parou na porta do estabelecimento. Na rua um velho subiu à sua carroça e tomando as rédeas nas mãos, incitou o animal ao movimento. Ante a indiferença do burro em mexer-se, o velhote não perdeu a pose e disse: "Esse não é movido a álcool, mas também é difícil na partida".
Grogue, em resposta gritou: "Ô Edgar G. Anta... você não é o Noel, mas também não deixa de ser um bom velhinho."
Tia Cris entrou no salão e ouviu o pedido do Grogue. Ele queria pinga. A moça considerou aquele freguês um chato. Passava horas e horas sentado à mesa com um mísero copo de pinga. Não gastava, não consumia, e ainda enchia o saco de todo mundo. Ela então resolveu aplicar uma variante da brincadeira do copo: simularia uma conversa ao telefone. E foi assim, falando, falando que ela fez aquele tonto ir embora.
- É verdade que fecharam o bar do Maçarico? - perguntou ansioso Van de Oliveira Grogue, ao se aproximar atordoado da Dina Mitt, que saboreava a sua segunda cerveja, no boteco do Bafão.
- Van Grogue, seu focinho de porco desalinhado! Você não é caspa, mas também não sai da minha cabeça. - reagiu a mulher sentindo alegria ao ver o parceiro de copo.
- Eu não acredito que você já se encharcou. Você soube do Maçarico? - quis saber Grogue sedento também de notícias.
- Fecharam a baiuca do cara. Também... Não tinha alvará, não tinha autorização pra nada. Como é que poderia funcionar uma espelunca daquelas sem causar danos às pessoas? - antecipou-se o Bafão adiantando as novidades ao Grogue.
- E depois tem mais: Eu mesma presenciei muita sujeira naquele salão; muita sacanagem e vi até que acendiam velas pro capeta atrás da porta do banheiro. - confirmou a Dina Mitt.
- É sim. Os caras da prefeitura baixaram em peso no boteco mais mal falado do bairro. Maçarico levou cada multa que não sei se ele consegue pagar. - disse Bafão limpando o tampo do balcão com o seu guardanapo alvo.
Grogue fez-lhe o sinal de que queria uma cerveja enquanto dizia:
- É uma vergonha pra comunidade esse tipo de gente. O Maçarico é um mau elemento. Dizem que ele não pagava os funcionários. Que vinha gente de fora pra ajudar no serviço, mas ele não registrava em carteira, não depositava o fundo de garantia e nem recolhia o INSS. Os empregados trabalhavam a troco de pinga, cigarro e cerveja.
- O bairro inteiro esperava essa atitude da prefeitura. Teve gente que foi falar diretamente com o caquético testudo. Apesar de não acreditarem que ele mandaria cumprir a lei, ele mandou o pessoal averiguar e pronto: confirmaram as irregularidades - falou Bafão servindo a cerveja ao Grogue.
- Sabe o que eu ouvi dizer? - indagou Dina - Disseram que o Maçarico e a mulher dele, sabe aquela retardada mental, que catava latinha de cerveja na rua e que depois amigou com ele? Então... Contaram-me que foram reclamar pro bispo que eles eram perseguidos.
- Mas como perseguidos? - quis saber Van de Oliveira Grogue. - Eles devem se adequar à lei. Se a lei manda pagar as multas e os impostos, então devem fazer isso.
- É que eles são ignorantes. Idiotas. E você sabe: gente assim pensa diferente. Pra começar não sabem ler. Como é que a comunidade pode esperar coisa boa de gente que mete os pés pelas mãos? - questionou Dina Mitt.
- É. O Maçarico é bem retardado. Se disserem pra ele que botar fogo no boteco dá direito a seguro, ele é capaz de incendiar tudo.
- Eu sabia que ele era "mental", mas não acredito que ele seja capaz de fazer isso. - duvidou Van de Oliveira Grogue.
- Não duvide. O pai do Maçarico era demente também. Louquinho de pinga. Numa ocasião, no meio da madrugada, ele saiu na rua deserta, e começou a disparar o revólver. Os vizinhos se apavoraram. Mas teve um corajoso que se aproximou, bem devagarzinho, e perguntou ao cara o que estava acontecendo. Sabe o que ele respondeu? Respondeu que tinha um ladrão tentando roubar o carro do vizinho - contou Bafão.
- Mas e daí? - quis saber Van de Oliveira.
- E dai que quando disseram pro maluco que nem o carro e nem o vizinho estavam ali, o demente envergonhou-se parando com a balburdia. Mas voltou pra cama resmungando.
- É só em Tupinambicas das Linhas que isso acontece - definiu Dina Mitt. - Mas vem cá: O Maçarico não tinha uma cadela Poodle que latia a noite inteira infernizando a vizinhança?
- Não. Quem tinha um demônio desse era o Célio Justinho, casado com a Luísa Fernanda, aquela gerente de banco que precisou de treinamento intensivo durante um ano, quando a direção trocou a cor das guias que ela deveria carimbar diariamente.
- Gente... Vocês não sabem o que aconteceu - gritou esbaforido Donizete Pimenta ao entrar correndo no boteco.
- Fala o que aconteceu criatura careca e cabeçuda - exortou a Dina Mitt alarmada.
- A polícia acaba de chegar no bar do Maçarico. Pararam bem na porta e deram voz de prisão pra ele. Quando os homens chegaram ele estava lendo um jornal na porta do estabelecimento. Confirmaram que ele roubava carros no bairro vizinho. - concluiu Pimenta arfante.
- Lugar de bandido é na cadeia - garantiu Van Grogue.
- Bandido bom, é bandido falecido - respondeu Dina Mitt.
Alguém duvidaria?
Sentado sozinho a uma mesa isolada do bar, Van Grogue comia pastel com sorvete.
- Ficou maluco? Ô Grogue, que mistura é essa? - Indagou irônico o Adan Molly que chegava bem entusiasmado ao botequim.
Van levantou a cabeça e, envergonhado respondeu:
- Você também vai ralhar comigo?
Molly voltou-se para o Maçarico que, alisando o tampo do balcão com um guardanapo, e apontando o Grogue com o queixo, girou o indicador da mão direita na altura da fronte. Quando Molly se aproximou o dono do boteco sussurrou-lhe:
- Depois que disseram que o bilau dele parece sorvete, que quando esquenta amolece, ele ficou assim, meio jururu.
- Que mico hein Maça? - gracejou o Adan.
- Uma verdadeira estilingada no bom-senso.
Adan Molly pegou a garrafa de cerveja e o copo que lhe dera o Maçarico e caminhou em direção à mesa do Grogue perturbado.
- É verdade que te internaram num manicômio Van?
- Hã hã. - respondeu, envergonhadíssimo, o mais famoso pingueiro de Tupinambicas das Linhas. Então ele continuou:
- Tinha um enfermeiro lá dizendo que ia injetar gás na minha cabeça só pra tirar um raio X. É mole? Ele era malvado. Amarrava-me na cama e punha um soro no meu braço que me fazia sofrer muito.
- Mas por que ele faria mal pra você? - Quis saber o Adan Molly.
- Vingança. Eu fiquei devendo alguns meses de aluguel para outro enfermeiro que era primo dele.
- Nossa! Impressionante. Como é que você descobriu isso tudo?
- Sabe aquela borracha que se usa pra amarrar o braço quando se tira a pressão da pessoa? - continuou o Van choroso.
- A tripa de mico?
- É essa mesmo. Então… O cara esticava e soltava a borracha contra os meus braços e as minhas costas; era cada borrachada que eu vou te contar; doía tanto que eu tinha de sair correndo.
- Mas quem era o enfermeiro? - perguntou Adan Molly bebendo com satisfação a cerveja geladíssima.
- O que me agrediu eu não conhecia. Mas aquele de quem aluguei a casa tinha sido condenado por homicídio. O cara ficou preso durante dois anos. Ele fez um aborto numa empregada doméstica que morreu.
- Mas por que você alugou a casa justamente do assassino? - indagou Adan Mollly.
- Porque eu não sabia.
- E essa história do bilau?
- É brincadeira. Sou macho pra caramba.
- Será?
Depois que tomou o sorvete, comeu o pastel e ouviu do Maçarico a resposta negativa, para a sua indagação sobre a existência de peixe frito pra vender, Van pagou a conta e saiu do bar.
Ele permaneceu parado no ponto de ônibus por pouco tempo. Grogue entrou no coletivo, pagou a passagem e preguntou ao cobrador se aquele carro passaria defronte ao zoológico.
- Pergunte para o motorista. - respondeu com rudeza, o cobrador.
Grogue então, por causa do ruído do motor, falando em voz alta ao motorista, quis saber se ele pararia perto de um ponto, próximo ao zoológico.
Van desceu e andando duas centenas de metros chegou ao jardim zoológico onde viu a águia, o leão, e o burro.
Depois, caminhando de volta ao ponto de ônibus, viu de longe, que já havia um parado ali.
Ao entrar no coletivo ele notou um pedaço de papelão deixado sobre o primeiro degrau. Não muito distante o motorista falava ao celular:
- Gritou sim. Gritou feio com um colega nosso.
Van desconfiou que aquilo não deixava de ser mais uma trança que se formava à sua passagem.
28/08/2012
Ele varreu o chão, lavou os copos, enxaguou o banheiro, lustrou o tampo do balcão e, tomando os envelopes, que vieram na tarde do dia anterior, trazidos pelo carteiro, passou a abri-los um por um.Bafão abriu o boteco logo depois das oito horas, naquela manhã de sexta-feira. Ele pensara em chegar mais cedo para preparar o ambiente que receberia o pessoal do carteado logo mais a noite.
Eram cobranças de bancos, da empresa de telefonia, da companhia de luz, do serviço municipal de água, e panfletos publicitários das mais variadas formas.
Enquanto Bafão lidava com os papéis um dos cachorrinhos pretos da vizinha entrou no bar e, farejando pelos cantos, estancou perto do lugar onde permanecia o proprietário, levantou então a perna traseira direita, soltando em seguida, o esguicho determinador do local por onde passara.
Bafão já pensara em queixar-se com a proprietária sobre aquele bichinho que vadiava o dia todo pelas ruas do quarteirão. Mas como conhecia bem o temperamento melindroso da moradora, para não agitá-la, resolveu escrever-lhe uma carta.
Pegando um lápis pôs-se a rascunhar um desabafo contra a falta de cuidados e atenção daquela velha senhora tristemente barriguda, de calcanhares rachados, dona de um cachorro enxerido.
Depois Bafão, naquele armário antigo, de portas envidraçadas, onde expunha os sabonetes, as pastas dentifrícias, as linhas, as agulhas, os cadernos, os lápis e canetas, capturou um envelope.
Com uma lambida, na cola seca, da borda da aba da sobrecarta, ele fechou lá dentro a missiva.
Da gaveta do balcão ele tirou um selo, dando-lhe a lambidela umidificadora que possibilitou a fixação da estampa fina no envoltório tosco.
Irrompendo bar adentro uma garotinha, de cabelos curtos, castanhos e lisos, pediu um sorvete de chocolate, que imediatamente depois de ter a sua embalagem rasgada, foi levado à boca com avidez.
- Minha mãe mandou marcar na conta dela. – disse a menina ante o olhar atônito do Bafão.
- Ô mocinha, faça-me um favor. Quando passar por aquela caixa dos correios, ali perto daquele poste, coloque lá essa cartinha. - pediu Bafão para a freguesa que saia.
- É para o papai Noel? – quis saber a pequena lambendo ostensivamente a guloseima.
- Não é não. É para uma amiga dele. – respondeu o comerciante.
A jovenzinha saiu deixando o homem a sós, com a papelada dos credores.
Bafão olhou-se no espelho pequeno, de moldura laranja, e achou que já estava no tempo de cortar os cabelos.
Pensando em despreocupar-se ele então abriu uma garrafa de licor de jabuticaba, servindo-se com prazer num pequeno copo.
- Ah, os licores!!! Mas que delícia...
Quando o homem se preparava para ligar ao fornecedor das bebidas, a fim de reforçar o estoque de cervejas geladas, que serviria ao pessoal do carteado, ele notou que uma jovem magricela, de estatura pequena, com os cabelos pretos, presos em um rabo de cavalo, vestindo um short marrom e camiseta regata verde, parou defronte a porta do boteco.
Com a cabeça baixa, e de frente para o comerciante, a mulher fez com a mão direita, alguns gestos que lembravam as lambidas de uma girolanda imensa.
Bafão que pensava já ter visto tudo o que de mais bizarro podiam apresentar algumas almas atormentadas daquela rua, não esperava por mais aquela demonstração de menosprezo.
Ele recordou-se que quando chegava ao bar pela manhã e saia à tardezinha, sempre havia alguém da vizinhança fazendo-se notar.
- Fazer o quê? – inquiriu ele, meneando a cabeça. – Temos de ter paciência. Muita paciência.
Mudando de assunto:
Relembre Ângela Maria cantando “Mentindo”.
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Tupinambicas das Linhas não era uma cidade agradável. Essa conclusão antiga baseava-se no fato de que a maioria das edificações civis foi construída sobre pântanos.
As emanações gasosas pútridas foram observadas pelos primeiros colonizadores, mas insuficientemente desagradáveis para os convencerem de que o lado do rio, onde ergueram as primeiras construções, não era o mais saudável.
Os gases fétidos, resultados da podridão fermentada no subsolo, emergiam a todo o momento, tornando insalubres alguns locais específicos da urbe. Esse desconforto era intensificado quando não havia ventos e o calor tornava-se desprazível.
Jarbas o prefeito caquético e testudo, fora comunicado, há muito, sobre a existência dessa malignidade, entretanto ele afirmava que não podia fazer praticamente nada a não ser instalar dutos que facilitassem a vazão das exalações. O assunto ocupava boa parte dos espaços na mídia e das conversas dos moradores dos locais mais prejudicados.
Foi nesse clima que, naquela manhã de quarta-feira, Van de Oliveira Grogue adentrou o bar do Maçarico cantarolando:
- Litrão ê, ô... Litrão ê, ô...
Maçarico lia o Diário de Tupinambicas, que aberto sobre o balcão, noticiava uma blitz dos agentes da polícia, na prefeitura.
- Minha pinga! – exclamou Van de Oliveira notando o desprazer que provocava no Maçarico ao interromper sua leitura.
- Você viu o que descobriram na prefeitura? – perguntou o dono do boteco, enquanto enchia rapidamente o copo do cliente.
- Sempre tem maracutaia nova. Qual foi dessa vez? - questionou Van, depois de emborcar a “branquinha”.
- Prenderam um grupo de funcionários que simplesmente apagava dos computadores da Dívida Ativa, os débitos dos devedores de impostos que se propusessem a pagar 30% dos valores. E parece que o Jarbas sabia de tudo. Diziam que ele recebia alguma comissão.
- Eu ouvi essa notícia pelo rádio, no começo da madrugada. Levaram os computadores, e cinco suspeitos. – confirmou Van de Oliveira.
- Descobriram que o esquema de sumiço dos dados era feito há muito tempo. Desviaram milhões e milhões de reais da prefeitura. O prejuízo é bem grande. – completou Maçarico.
- Isso explica o carro novo que o Mariel Pentelini Demorais comprou de uma hora pra outra. – concluiu Van de Oliveira.
Atendendo a um gesto do bebedor, Maçarico abriu uma cerveja postando-a sobre o balcão.
– O cara não tinha nada, mas depois que passou a trabalhar na prefeitura, deixou o bigode crescer e comprou até apartamento no centro da cidade. – continuou Grogue.
- O Mariel Pentelini não é aquele mocorongo entrevado que tinha uma serralheria, falida logo depois da morte do pai dele? – quis saber o Maçarico.
- É esse mesmo. Eu o conheço desde criança. Na casa em que os pais dele moravam havia um limoeiro, uma pitangueira, um orquidário feito com bambus e, bem defronte a porta da cozinha, um gramado pequeno. Naquela casa, antes dos pais do Mariel mudarem pra lá, funcionou uma lavanderia. Isso explicava a existência de quatro tanques enormes num dos lados da morada. Perto dos tanques tinha um aposento com uma janela pequena e a porta bem rústica. Ali o pai do Mariel depositava pneus usados e até material de campanha política.
- Não era naquela casa que funcionou um asilo de insensatos? – indagou o dono do boteco.
- Isso eu não sei. Mas naquele tempo na sala havia cristaleira, mesa e cadeiras no estilo colonial, quadros nas paredes e o ambiente todo era bem agradável.
- Que eu saiba esse Mariel Pentelini vive de bar em bar curtindo as “canas” que entorna e cofiando o bigode branco. Ele não estava aposentado? – inquiriu Maçarico.
- Nada. Juntou-se com a “virgem dos lábios de mel” da Vila Dependência e toca o trole até hoje. – garantiu Van de Oliveira.
- Fazer o que, não é? Temos de ter paciência, muita paciência. – garantiu Maçarico.
Dando-se por satisfeito e finalizando o encontro, Van de Oliveira perorou:
- Por falar nisso, Maça, anota pra mim essa continha, que logo no fim do mês eu passo pra acertar. Tudo bem?
06/10/2011
Tupinambicas das Linhas não era a Líbia, mas também tinha o seu Muammar Kadaffi. Era o vereador Fuinho Bigodudo, conhecido como Muar Fuinho Bigodudo.
Da mesma forma que o ditador líbio insistia em não deixar o poder, mantido com injustiças e violência, o Muar Tupinambiquense também se negava a “largar o osso”, mantido com verbas substanciosas, aos comunicadores dependentes da cidade.
Mas na manhã de domingo, no bar do Maçarico, quando já degustava a cerveja gelada, com a barriga encostada no balcão, Gelino Embrulhano pôde notar a presença espalhafatosa do Omar Dadde que vestindo bombacha, chapéu de abas largas, bota de cano longo, camisa azul pavão e um lenço de cetim amarelo, amarrado no pescoço, entrou em cena declarando:
- Eu vou/Eu vou/Pra casa agora eu vou... – Dadde mal terminou sua mensagem matinal quando foi interrompido por Gelino Embrulhano, que falou ao Maçarico, em alto e bom som:
- Pronto! Acabou o sossego! O chato acaba de chegar.
- Mas, olha... Veja quem está aqui. É o sujeito mais mentiroso, enrolado e falso que a cidade já viu. – respondeu Omar Dadde, olhando irônico para o Maçarico.
E depois ainda, aproveitando o silêncio que se fez, por alguns segundos no botequim, Dadde continuou:
- Que mané chato, mano? Parece que não me conhece.
Gelino Embrulhano respondendo a pergunta defendeu-se:
- Onde eu estou você logo vem atrás. Parece boiolagem, tesão de argola; qual é a tua parceiro?
- O quê? Tesão de argola? Ocê tá louco Embrulhano? Eu sou é muito macho, meu chapa – indignou-se Omar Dadde. A cidade é livre, eu também sou. Por isso vou onde quero.
- A cidade pode ser livre e seus habitantes também – interviu Maçarico interrompendo a conversa entre os dois fregueses. Ele julgou que a rixa poderia descambar para a agressão física e o quebra-quebra.
- Ouvi um comentário que esse tal vereador Fuinho Bigodudo fez uma lei que proíbe o funcionamento de todos os bares e restaurantes da cidade, depois das 10 horas da noite. Ele instituiu o famoso toque de recolher.
- O quê? Ele fez isso? – perguntaram em uníssono os dois contendores.
- Fez sim. E se não me engano, o projeto de lei está no gabinete do prefeito Jarbas, pra ser aprovado – completou Maçarico, vendo que os birrentos esqueceram as hostilidades por alguns instantes.
- Isso quer dizer que ninguém mais poderá tomar seus birinaites nos bares, depois das dez horas da noite? – questionou Embrulhano.
- Mas isso é um absurdo! Vamos iniciar um abaixo assinado pedindo a cassação disse Fuinho. Ô Sujeito maldoso! Votar nele é a mesma coisa que adubar erva daninha – proclamou Omar Dadde brindando com um copo de cerveja que acabara de encher.
- Vamos depor esse Kadaffi tupinambiquense! – decretou Gelino Embrulhano.
A partir daquele momento Maçarico teve a certeza de que o bar e a sua própria integridade física, estariam assegurados.
- Olha, o que eu sei é que esse Van Grogue é meio louco, não dá pra confiar nele. – disse com firmeza o Pery Kitto jogando no chão um pouco de pinga, daquele seu segundo copo de cana, naquela manhã de sábado no bar do Maçarico.
Ernesto Mail que já bebericava a cerveja geladíssima, aproveitando a onda maledicente que se iniciava emendou:
- O cara corria atrás do pai armado com faca. Você quer o quê? As bocas de Matilde comentavam que quando esse demônio era criança xingava a mãe, porque lá na escola diziam que ele tinha a cabeça grande e era muito feio.
Maçarico ao perceber que a ventania iniciara, tirou do ombro o guardanapo branco e, alisando o balcão, na periferia do local onde os bebedores depositavam os copos, pigarreou ligando em seguida o rádio.
- Mas você não pode acreditar: no dia em que o E.C. 7,5 de Novembro ia jogar a partida do título, nós os mantenedores dessa honrosa instituição tupinambiquense, o famoso bar do Maçarico, combinamos uma caravana de torcedores do bairro que rumaria a pé, num bloco compacto, para o estádio. Pois não é que essa figura energúmena, conhecida como Van Grogue ia na frente, sozinho, enquanto que todo mundo seguia atrás? – martelou Zécílio Demorais o proprietário do Diário de Tupinambicas das Linhas.
- Não, mas ele queria dar uma de gostoso, de importante. Só porque foi jogador de futebol, achava que podia ir mais depressa que os outros. E olha que queria até indicar as ruas, o trajeto. – concluiu Pery Kitto.
- Não sei o que esse cara tem na cabeça. Ao invés de arrumar um emprego, trabalhar como todo mundo faz, fica nessa de induzir o povo contra o Jarbas. Por que não vai assentar tijolo, bater aquela massa esperta, levantar parede? – inquiriu indignado o E. Mail.
- O cara é muito folgado. Vai ocupando espaço que não é dele. Não se toca, não sabe que não é bem aceito. Não sei porque não se manda logo. – questionou Zécílio Demorais.
- Com isso que ele fazia, era como se dissesse que todo mundo aqui na cidade era burro, que ninguém era capaz de nada. Mas ora veja! – afirmou Pery Kitto, já atordoado.
- Eu não sei jogar bola. Mas não aprendi porque precisava trabalhar. Tinha que cortar cana quando era criança. Não é bem assim do jeito que esse cara pensa não. – arrematou Zécílio Demorais ingerindo o último gole de cerveja.
- Maçarico do inferno! Manda outra geladíssima pra gente ai, mano! – solicitou já um tanto quanto que embriagado o Pery Kitto.
Para o espanto geral, o dono do boteco respondeu, depois de vasculhar, com o olhar de gavião, o interior do balcão refrigerado:
- Má notícia moçada! Acabou a alegria. Findou a cerveja. Ontem a noite programei um telefonema, que faria hoje cedo, para o depósito pedindo outra remessa, mas esqueci. Não sei por que motivo não liguei, pedindo mais mercadoria. – justificou Maçarico.
A decepção baixou sobre os bebedores como a chuva gelada, repentina, desaba sobre os transeuntes desavisados.
Eles mal tiveram tempo pra deixar escapar um oh, em uníssono, das bocarras boquiabertas, quando entrou com um notebook, debaixo do braço esquerdo, o odiado Van Grogue.
- Mas o que é que você está esperando Maçarico, liga agora pra distribuidora. A gente esperamos. – pediu com carinho o E. Mail.
Rendendo-se aos clamores, e temendo perder a freguesia, Maçarico tentou ligar para a empresa fornecedora, mas depois de alguns segundos ele estancou.
- E aí? Vai ou não vai? – perguntou com ansiedade o Zécílio Demorais.
- De que jeito? Estamos sem telefone. Está mudo.
- Como assim? Você deixou acabar o estoque de cerveja justamente no sábado, véspera do primeiro jogo do E.C. 7,5 de Novembro, na primeira divisão? Mas você enlouqueceu Maçarico? Temos que interná-lo na casa transitória com a máxima urgência. Isso é questão de saúde pública. – sentenciou o iradíssimo Pery Kitto.
- E ainda por cima sem telefone. Mas é o fim do mundo! É mesmo o final dos tempos. Não dá pra acreditar. Gente! Que absurdo! – indignou-se E. Mail.
- Mas que raio de comerciante é você, Maçarico? – quis saber, com os olhos esbugalhados, o Zécilio.
- E agora? Vamos ficar assim perdidos, nesse arrabalde, sem cerveja? Não dá pra acreditar nisso. – rebelou-se E. Mail.
Observando tudo o que se passava Van de Oliveira Grogue, desconsiderando a reação de frieza, que sua presença causara, quando entrara no recinto disse:
- Com licença. Por que vocês não mandam um e-mail para a empresa, solicitando via internet, o pedido?
Maçarico, Zécilio Demorais, Pery Kitto e Ernesto Mail paralisaram-se boquiabertos. Ao se entreolharem eles ouviram o que dizia o Grogue:
- Olha, eu tenho o notebook e sei como funciona; posso enviar a mensagem. Inclusive para o mundo todo. Vocês querem?
Depois de alguns minutos angustiosos, o caminhão do depósito de bebidas encostou defronte o bar, descarregando duas vintenas de caixas de cerveja.
- Esse Van Grogue é gente fina. Eu sempre acreditei nisso. – concluiu Zécilio, agora rodeado pelos companheiros que brindavam os bons momentos, com a saborosa alegria recém-chegada.
Texto revisado.
09/08/11
O catador de materiais recicláveis e ex-vereador Octávio Rocha, 64, conhecido como Arruia morreu na noite de quarta-feira (3), a caminho do hospital em Santa Bárbara d'Oeste, depois de passar mal num bar.
Arruia foi o terceiro vereador mais votado na cidade em 2004, com 1.675 votos, pelo PTN. A causa da morte não foi informada, mas a família acredita que tenha sido parada cardíaca.
Natural da cidade vizinha Americana (127 km de São Paulo), Octávio Rocha tornou-se popular enquanto recolhia materiais recicláveis distribuindo a saudação “Arruia” que, segundo ele, significava "salve, amigo" no dialeto árabe falado no Líbano.
Morador de rua desde 1995, Arruia chegou a trabalhar também como frentista e comerciante. Tentou se reeleger em 2008, mas não teve o mesmo sucesso da primeira candidatura.
De acordo com a família, ele havia voltado a atuar como catador em Nova Odessa (122 km de São Paulo), mas não tinha residência fixa. "Ele gostava muito de ficar andando pelas ruas, era o que ele queria mesmo", contou a cunhada Merari Esteves. Segundo ela, por conta do estilo de vida do ex-vereador, nenhum dos seis filhos vivia com ele.
O velório ocorreu na Câmara Municipal e o presidente da Casa, Erb Oliveira Martins, o Uruguaio (PPS), decretou luto oficial de três dias nas repartições legislativas.
"Fazia dois anos que eu não o via, mas era uma pessoa muito querida, carismático. Quando soube que ele foi o terceiro mais votado não me espantei, porque ele sempre foi de construir amizades e correr atrás do que queria", disse Esteves.
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