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O vereador Ely Chir, também conhecido como "boquinha de chupar ovo", alçou o dedinho indicador da mão direita acima da cabeça e disse com voz aguda, naquela noite de segunda-feira, no plenário da câmara municipal:
- Pela ordem, senhor presidente!
Fuinho Bigodudo, que presidia a sessão, levantou os olhos da maçaroca de papeis que manuseava e, olhando por cima do aro dos óculos, consentiu:
- Pois não vereador boquinha... Digo, doutor Ely Chir. Vossa excelência tem a palavra.
- Senhor presidente... Nobres pares componentes desta honrada casa de leis: gostaria de consignar os meus protestos contra a rejeição do meu projeto de lei que revogava essa tal da gravidade. Todos sabemos que a nossa cidade carece, há muito, das modernidades. Nós já adentramos ao século XXI e, segundo tenho ouvido, pelos lugares por mim frequentados, que a nossa querida urbe não passa mesmo de uma simples e mera província. Em decorrência deste gravame venho propondo a modificação das leis, pois sei que é uma forma de mudarmos a ordem das coisas e com isso trazer, se possível, o progresso para nossa cidade e nossa gente.
- Um aparte, nobre vereador! - interrompeu Zé Cíliodemorais o mais antigo proprietário do Diário de Tupinambicas das Linhas, também promovido, pelo voto popular, a vereador.
- Pois não, vereador. Tem o aparte - respondeu Ely Chir ajeitando os microfones da sua tribuna.
- Particularmente sou testemunha do seu empenho em trazer a modernidade para a nossa terra. Tenho visto a sua luta incansável em prol dos cachorros e cadelas abandonados nas ruas da nossa cidade. Soubemos que Vossa Excelência cuida também dos gatos e isso nos honra muito. Entretanto considero essa questão da revogação da lei tão antiga como um equívoco. Não sei se isso seria possível. Talvez não seja da nossa competência...
- Questão de ordem senhor presidente! - manifestou-se a vereadora Dina Mitt Pacheco - Senhor presidente, temos informações do nosso departamento jurídico que essa matéria só pode ser legislada pela assembleia estadual. Nós enquanto município, não dispomos da legitimidade para ordenar esse tipo de matéria.
- Perfeitamente... - concordou o presidente Fuinho Bigodudo - Mas queira prosseguir com a sua manifestação o nobre vereador Ely Chir.
- Muito obrigado, senhor presidente. Mas como dizia eu... Realmente, creio que essas leis antigas e já ultrapassadas deveriam ser revogadas e erigidas outras em substituição. Com isso, é inegável, que a nossa cidade e o nosso querido povo se inseririam no mundo moderno.
- Um aparte, nobre vereador! - pediu Billy Rubina erguendo o braço direito.
- Pois não, nobre colega.
- Não creio que seja sensato esse projeto de revogar a lei da gravidade. Entretanto, se é para o bem de nossa cidade e para a melhoria do nosso povo, apesar de o nosso jurídico informar que a competência não seja nossa, vossa excelência tem o meu apoio.
- Muito obrigado, nobre edil. São com essas atitudes que a nossa casa de leis se engrandece. Mas, conforme eu dizia a rejeição, deste meu projeto, com certeza, resultará na manutenção do atraso da nossa querida terra. Mesmo assim gostaria de agradecer a todos os que nos deram o seu apoio. Muito obrigado senhor presidente.
- Pois não. Passemos agora à discussão do projeto de lei número 01081767 de autoria também do vereador doutor Ely Chir que trata da substituição de todas as subidas da cidade, e da manutenção somente das descidas. Projeto em discussão.
- Pela ordem senhor presidente - levantou-se Charles Brochon o funileiro marreta de ouro, mais importante da cidade.
- Pois não vereador. Com a palavra o professor Charles Brochon - sentenciou o Fuinho, pensando já nos momentos de chateação.
- Senhor presidente, nobres vereadores, vereadoras, senhores eleitores aqui presentes e também os que nos acompanham pela rádio e televisão Tupinambiquense: em que pese a relevante importância deste projeto inusitado do nobre colega Ely Chir temos para conosco que seria de grande desfavor para a nossa cidade a supressão de todas as subidas das ruas da nossa terra. Vejam que se mantivermos somente as descidas, como nossos velhinhos e velhinhas praticarão seus exercícios físicos eficientes tendo como opção somente a moleza das decidas? Percebam que a aprovação deste projeto porá em risco, inclusive, os planos terapêuticos dos nossos ilustres cardiologistas e seus consultórios especializados.
- Questão de ordem, senhor presidente - manifestou-se a vereadora Dina Mitt Pacheco - Não vejo porque a supressão das subidas da cidade comprometeria a terapêutica dos nossos cardiologistas, uma vez que há aparelhos que simulam essa condição geográfica. Entretanto seria bastante equivocada a aprovação deste projeto uma vez que sem subida não haveria também as descidas. Ora, como o nosso executivo manteria somente as descidas se suprimidas forem todas as subidas? Elas são inerentes. Sem uma não há a outra. Não sei se fui bem compreendida.
- Perfeitamente, nobre vereadora - completou o Fuinho Bigodudo - Como ficariam as nossas enxurradas, não é verdade? Mas prossiga nobre vereador Charles Brochon.
- Sim, meus queridos pares. Há também a questão dos carrinhos de rolimã. Já imaginaram as nossas crianças sem a possibilidade de praticarem as corridas com os carrinhos de rolimã? Encerro por aqui a minha manifestação. Muito obrigado.
- Com a palavra o autor do projeto, o doutor Ely Chir - disse o Fuinho.
- Senhor presidente, senhoras vereadoras e vereadores aqui presentes, povo que nos acompanha pela rádio e TV desta nossa querida cidade: só tenho a dizer que me sinto insuficiente para, por meio das leis, trazer o progresso a nossa urbe. Procuro formas de proporcionar a inserção da nossa gente no mundo civilizado, mas por mais que eu faça vejo que não consigo. Sem a aprovação percebo que meus esforços tornam-se inúteis para a condução do nosso povo a um mundo melhor. Tenho feito isso tudo, mais em resposta a todos aqueles que dizem que nós vereadores recebemos fortunas mensais para não fazer praticamente nada durante todo o tempo da nossa gestão. Vejo que a rejeição destes meus projetos confirma a tese de que nós fomos eleitos para não fazermos nada. Devemos permanecer silentes e imóveis. Nada do que possamos fazer mudará a situação do nosso povo. Por isso peço que em votação rejeitem esse nosso projeto 01081767.
- Em votação o projeto de autoria do vereador Ely Chir que suprime todas as subidas da cidade. Sentados rejeitam. Em pé aprovam. Rejeitado o projeto.
Encerrada a sessão, no saguão da câmara municipal, com o semblante cansado, mas feliz, Ely Chir comentava os acontecimentos com Van Grogue que aparecera para cumprimentá-lo:
- A gente fazemos o que podemos, não é verdade?
- É sim, meu amigo. Quem faz o que pode, a mais não é obrigado. Vamos tomar uma gelada no bar do Bafão? - perguntou serenamente Van de Oliveira Grogue.
Quando Jesus nasceu um cometa cruzou o céu. Esses dois fenômenos indicavam que as profecias, sobre um novo tempo, feitas séculos antes, se iniciava.
É muito comum, diante das ocorrências significativas da vida das pessoas, surgirem momentos de dúvidas e indecisões quando ao futuro.
Então o nascimento de uma criança, o casamento, a separação, a morte, são mudanças na vida que trazem consigo muita indefinição sobre "como será o amanhã".
Para a solução desses problemas havia, naquele tempo, os oráculos, que eram respostas dadas pelas divindades aos que as consultavam.
Hoje quase todas as dúvidas são resolvidas pela sociologia, psicologia, medicina, psicanálise, jornalismo, direito e todos os demais ramos da ciência e da tecnologia.
Mas os oráculos são ainda importantes e muito usados em todas as partes do mundo. O horóscopo diário, lido nos jornais, a consulta ao tarô, aos búzios são as formas que se utiliza para decifrar o passado, o presente e também o futuro.
Mas há ainda outra maneira, além destas elencadas acima, de obter respostas, de "projetar" o vindouro, ou "planejar" o vir a ser de uma pessoa. Trata-se da capa do jornal, de grande circulação, publicado no dia do nascimento dela.
É um tipo de script, de um "estava escrito" muito usado por políticos, por gente desejosa de manipular, controlar e decidir sobre o futuro das outras. Os inescrupulosos se valem dos acervos, dos arquivos das grandes instituições governamentais que lhes permitem acesso.
O assunto é levado tão a sério que a moça recém-casada pode decidir não ter filhos porque no dia em que ela nasceu a capa de um jornal influente trazia a matéria sobre a mãe generosa que perdeu seu filho querido.
Um professor universitário pode tornar-se político profissional, manipulando a elaboração das leis reguladoras do uso do gás combustível, simplesmente porque na capa do jornal do dia em que ele veio ao mundo, havia notícias sobre o tal assunto.
A vovózinha pode ser afeita aos jogos de azar e até casar-se com pessoa dada a esse hábito, se na capa daquele jornal conceituado, havia um texto enorme sobre a prática do jogo do bicho.
A moça bonita pode sentir impulsos indicativos de que deve mesmo trabalhar na televisão, pois na capa do jornal, daquele dia em que ela veio à luz, havia notícia sobre o nascimento de cinco tigres no circo famoso.
O muleque acreditaria que cometeria suicídio, se no dia em que nasceu, havia na capa do jornal, a reportagem de uma criança morta em decorrência dos ferimentos na cabeça, provocados por autolesões.
Esse assunto capa é bem sério e pode se tornar terrível se houver quem, confundindo (dolosa ou culposamente), o substantivo com o verbo, buscar insistentemente alijar a pobre criança indefesa do seu órgão reprodutor.
- É verdade que fecharam o bar do Maçarico? - perguntou ansioso Van de Oliveira Grogue, ao se aproximar atordoado da Dina Mitt, que saboreava a sua segunda cerveja, no boteco do Bafão.
- Van Grogue, seu focinho de porco desalinhado! Você não é caspa, mas também não sai da minha cabeça. - reagiu a mulher sentindo alegria ao ver o parceiro de copo.
- Eu não acredito que você já se encharcou. Você soube do Maçarico? - quis saber Grogue sedento também de notícias.
- Fecharam a baiuca do cara. Também... Não tinha alvará, não tinha autorização pra nada. Como é que poderia funcionar uma espelunca daquelas sem causar danos às pessoas? - antecipou-se o Bafão adiantando as novidades ao Grogue.
- E depois tem mais: Eu mesma presenciei muita sujeira naquele salão; muita sacanagem e vi até que acendiam velas pro capeta atrás da porta do banheiro. - confirmou a Dina Mitt.
- É sim. Os caras da prefeitura baixaram em peso no boteco mais mal falado do bairro. Maçarico levou cada multa que não sei se ele consegue pagar. - disse Bafão limpando o tampo do balcão com o seu guardanapo alvo.
Grogue fez-lhe o sinal de que queria uma cerveja enquanto dizia:
- É uma vergonha pra comunidade esse tipo de gente. O Maçarico é um mau elemento. Dizem que ele não pagava os funcionários. Que vinha gente de fora pra ajudar no serviço, mas ele não registrava em carteira, não depositava o fundo de garantia e nem recolhia o INSS. Os empregados trabalhavam a troco de pinga, cigarro e cerveja.
- O bairro inteiro esperava essa atitude da prefeitura. Teve gente que foi falar diretamente com o caquético testudo. Apesar de não acreditarem que ele mandaria cumprir a lei, ele mandou o pessoal averiguar e pronto: confirmaram as irregularidades - falou Bafão servindo a cerveja ao Grogue.
- Sabe o que eu ouvi dizer? - indagou Dina - Disseram que o Maçarico e a mulher dele, sabe aquela retardada mental, que catava latinha de cerveja na rua e que depois amigou com ele? Então... Contaram-me que foram reclamar pro bispo que eles eram perseguidos.
- Mas como perseguidos? - quis saber Van de Oliveira Grogue. - Eles devem se adequar à lei. Se a lei manda pagar as multas e os impostos, então devem fazer isso.
- É que eles são ignorantes. Idiotas. E você sabe: gente assim pensa diferente. Pra começar não sabem ler. Como é que a comunidade pode esperar coisa boa de gente que mete os pés pelas mãos? - questionou Dina Mitt.
- É. O Maçarico é bem retardado. Se disserem pra ele que botar fogo no boteco dá direito a seguro, ele é capaz de incendiar tudo.
- Eu sabia que ele era "mental", mas não acredito que ele seja capaz de fazer isso. - duvidou Van de Oliveira Grogue.
- Não duvide. O pai do Maçarico era demente também. Louquinho de pinga. Numa ocasião, no meio da madrugada, ele saiu na rua deserta, e começou a disparar o revólver. Os vizinhos se apavoraram. Mas teve um corajoso que se aproximou, bem devagarzinho, e perguntou ao cara o que estava acontecendo. Sabe o que ele respondeu? Respondeu que tinha um ladrão tentando roubar o carro do vizinho - contou Bafão.
- Mas e daí? - quis saber Van de Oliveira.
- E dai que quando disseram pro maluco que nem o carro e nem o vizinho estavam ali, o demente envergonhou-se parando com a balburdia. Mas voltou pra cama resmungando.
- É só em Tupinambicas das Linhas que isso acontece - definiu Dina Mitt. - Mas vem cá: O Maçarico não tinha uma cadela Poodle que latia a noite inteira infernizando a vizinhança?
- Não. Quem tinha um demônio desse era o Célio Justinho, casado com a Luísa Fernanda, aquela gerente de banco que precisou de treinamento intensivo durante um ano, quando a direção trocou a cor das guias que ela deveria carimbar diariamente.
- Gente... Vocês não sabem o que aconteceu - gritou esbaforido Donizete Pimenta ao entrar correndo no boteco.
- Fala o que aconteceu criatura careca e cabeçuda - exortou a Dina Mitt alarmada.
- A polícia acaba de chegar no bar do Maçarico. Pararam bem na porta e deram voz de prisão pra ele. Quando os homens chegaram ele estava lendo um jornal na porta do estabelecimento. Confirmaram que ele roubava carros no bairro vizinho. - concluiu Pimenta arfante.
- Lugar de bandido é na cadeia - garantiu Van Grogue.
- Bandido bom, é bandido falecido - respondeu Dina Mitt.
Alguém duvidaria?
Van Grogue entrou, naquele entardecer de segunda-feira, no bar do Bafão onde, com um gesto ao proprietário atento, comunicou sua intenção de saciar-se de cachaça e cerveja.
Depois de ingerir, numa talagada, o conteúdo do seu copinho habitual de pinga, ele notou que havia um pessoal diferente reunido com o gerente bancário Célio Justinho, marido da raivosa Luisa Fernanda.
Eram dois homens claros, de estatura elevada, um deles já passando dos 60 anos, porém magro e o outro mais novo, que se destacava pelo abdome abaulado, impossível de ser disfarçado pela camisa larga e florida, que escorria sobre o bermudão bege.
Um deles dizia:
-You cannot get carried away by the temptation of the devil.
E o outro traduzia para Célio Justinho que, fascinado, ouvia atento:
- Você não pode se deixar levar pela tentação do demônio.
- Because he tries to maliciously trying to take him to error, sin.
- Pois ele o tentará maldosamente buscando levá-lo ao erro, ao pecado.
Com um copo transbordante de cerveja numa das mãos, o pregador prosseguia:
- The devil whispers in your ear trying to end his life. He has a lot of envy and hate you.
- O capeta sussurra na sua orelha buscando acabar com a sua vida. Ele tem muita inveja e ódio de você.
Não se interessando pela conversa e nem mesmo desejando interrompê-la, Van de Oliveira, se apossou da garrafa de cerveja, do copo limpo, e caminhando em direção à mesa do canto, perto da porta, onde costumava ficar, sentou-se lentamente.
Van Grogue ingeriu um gole e, assim como que num passe de mágica, plim-plim, desconectou-se do ambiente.
Vestindo um calção azul, uma camisa branca com bolso do lado esquerdo, sandálias de couro, fivelas cromadas, o menino caminhava ao léu, pela rua principal da cidade.
Ele prosseguia devagar, olhando tudo, de um lado para o outro, entre os transeuntes apressados, que iam e vinham, vivenciando aquela azáfama do dia a dia.
A criança parou defronte uma loja de armarinhos, onde lá dentro havia um casal de meia idade.
Atrás do balcão, o homem, à direita da mulher, media um tecido verde com o metro amarelo de madeira. Eles conversavam entre si, mas ambos olhavam para o menino estancado na calçada.
Impelido, o menor iniciou a caminhada para dentro do salão. A mulher, ante a aproximação do estranho questionou-o:
- O que você quer?
Sem ter o que responder o guri viu-se embaraçado, tenso. O homem então perguntou:
- De onde você veio?
- A minha avó mora ali na esquina.
O casal se olhou e, o homem conseguindo identificar a pessoa citada, acalmou a companheira, que mais a vontade, fixou o olhar no menino. Então o homem perguntou:
- Você conhece o Pedrinho?
Sem esperar a resposta, e sob os protestos da mulher, o comerciante fez o garoto passar por uma abertura lateral, na qual uma cortina de pano verde escuro servia de porta, encaminhando-o assim para os fundos da loja.
Ao andar sozinho pelo corredor o menino ouvia alguém que falava numa língua estranha:
- The books are on the table.
O garotinho foi se aproximando até que pòde ver dentro de um quarto, cuja porta e janela estavam abertas, um adolescente todo vestido de branco, sentado sobre a cama. O mocinho recostado no travesseiro grande lia e relia a lição de inglês.
Quando percebeu a presença daquele estranho o estudante perguntou ao pai que estava lá na loja;
- Quem é, pai?
E de lá, o homem respondeu:
- É um vizinho. Um coleguinha seu.
- But where's the book? – continuou o aluno, olhando, da cabeça aos pés, o forasteiro medroso. Em seguida disse:
- Sente naquele banquinho. De onde você vem?
Enquanto explicava que era neto da mulher que morava na esquina, o visitante viu que aquela pessoa, com muita dificuldade, procurava se levantar da cama.
O pequeno e curioso forasteiro nunca tinha visto uma pessoa deficiente.
Com bastante esforço o estudante levantou-se, deixando ver que seu corpo, pálido e magro, não tinha parte do braço direito, que as pernas, e também os pés, eram atrofiados.
- Espere ai que eu já volto. - disse o jovem, depois de apoiar-se no par de muletas, que pegara da cabeceira da cama.
Enquanto ficou só, o menino pôde ouvir as vozes que vinham da loja.
Algum tempo depois, sacolejando, o aluno do ginasial entrou no quarto, sentou-se na cama, ajeitou o travesseiro às suas costas e prosseguiu com a lição:
- But you, what you want from me?
Vendo que a lengalenga não passaria daquilo e sentindo-se mal com o zunzunzum vindo da loja, o jovem visitante comunicou seu desejo de ir-se embora. E sem esperar por qualquer resposta retirou-se.
Quando o menino passou pelos comerciantes que ainda estavam atrás do balcão, ele ouviu a mulher dizer:
- Mas já vai? É tão cedo ainda...
No boteco do Bafão, Van de Oliveira Grogue reconectava-se com o meio ambiente.
- Note that the addiction can take you to disease, epilepsy report. Quit it already. – dizia o pastor com o copo de cerveja na mão.
O companheiro do pregador traduzia para Célio Justinho e Bafão que estavam atentíssimos:
- Veja que o vício pode levá-lo à doença, à epilepsia. Saia disso já.
Van Grogue levantou-se da mesa, caminhou cambaleante até o balcão, para pagar a conta e sair, quando o pregador, olhando para ele, disse em português:
- Arrependa-se! Saia dessa vida louca enquanto é tempo!
Para o espanto geral Van Grogue, sacando os caraminguás contados para pagar a despesa, respondeu:
- O quê!? Eu não quero nem saber.
Depois de passar o dinheiro ao Bafão, e massageando o braço direito, ele afirmou com voz poderosa, ao sair:
- Hoje vai dar águia na cabeça meu amigo. Já ouvi até o apito do trem.
03/01/12
Oscar Neyro aproveitando o momento em que não havia mais ninguém, além do proprietário, no bar do Bafão, naquela manhã de sábado, entrou detonando:
- Verme do inferno! Manda aquela pinga esperta e a cerveja mais bem gelada que você já viu.
Bafão que lavava alguns copos na pia, com a costa voltada para o balcão, virou-se sobre o ombro direito e olhando de baixo para cima, mirou a presença marcante do roliço Oscar Neyro, o mais novo morador da Vila Dependência.
Tirando do ombro esquerdo o guardanapo com o qual enxugou as mãos, o proprietário do boteco pôs sobre o balcão o copo específico de aguardente, enchendo-o com a tal filha-do-senhor-do-engenho.
No momento em que Oscar emborcava a caninha, Bafão servia-lhe a cerveja geladíssima. Foi nesse instante que adentrou ao recinto a mais bela e cobiçada morena de olhos verdes, das curvas perfeitas, e das coxas vistosíssimas do quarteirão. Era Aline, a solteira exuberante que inibia, de certa forma, a moçada do bairro, com aquele seu jeito extrovertido.
- Seu Bafão, eu quero um litro de leite, dois filões, e meio quilo de pó de café – disse a bela, com o dedo indicador da mão direita em riste, acima da cabeça. Ajeitando depois o short preto, semi-encoberto pela camiseta verde, e juntando os pezinhos, calçados com o legítimo All Star preto, ela esperou.
Oscar Neyro, boquiaberto, pousou seu olhar sobre a moça, mas antes que pudesse expressar qualquer juízo de valor foi interrompido pelo vozeirão do comerciante que passava, envoltos num saco plástico, sobre o tampo do balcão, os produtos pedidos pela consumidora.
- Marca isso tudo na minha conta. O senhor já sabe né? No fim do mês a gente acerta – concluiu a jovem saindo do boteco.
Ao voltar-se para a pia, onde continuaria lavando os copos, Bafão notou a entrada de outra moça também de short, chinelos, camiseta vermelha e preta sem mangas, e decote cavado.
- Meu Bafinho querido: embrulha um desodorante, um sabonete e aquela pasta dental esperta. Quero ainda dois filões e 160 gramas de mortadela. Faça-me esse favor, queridinho – pediu com gentileza a loura Débora, dona também dos mais vistosos olhos esverdeados da redondeza.
Oscar Neyro só olhava; ele mantinha o copo suspenso entre o tampo do balcão e os lábios.
Pedindo que Bafão anotasse a dívida num caderninho, a moça deixou o bar, balançando os quadris ostentosos.
Antes que Oscar dissesse qualquer palavra, fizesse algum comentário ou risse da situação, Bafão explanou:
- Nem pense bobagem. As duas são casadas. Você se lembra do Sylvester Stalonge? Pois é. Entrou numa fria lamentável. Engraçou-se com a mulher do Luis Hernandes e o casal teve de se separar. Do Luis você se lembra, não é? – indagou Bafão percebendo que Neyro já não prestava tanta atenção no assunto.
Diante da afirmativa do cliente, Bafão prosseguiu:
- O negro Luis Hernandes foi contratado pelo Sylvester Stalonge como desossador oficial do açougue que ele – o Stalonge – havia acabado de instalar. Depois de seis meses, mais ou menos, Hernandes começou a falhar no serviço. Vinha um dia, mas faltava outros três. Essa situação continuou até o momento em que Sylvester Stalonge, de surpresa, fez uma visita ao empregado. O dono do açougue foi recebido pela mulher do Hernandes, que informou estar o marido dominado pela bebida e sem condições de continuar no emprego. Bom, - pra encurtar a história -, papo vai, papo vem, o Stalonge “traçou” a mulher do Hernandes.
Ante a face de espanto demonstrada pelo já embriagado Oscar Neyro, Bafão prosseguiu:
- Olha, meu amigo, a confusão foi tanta, a quizumba tamanha que não principiaram uma revolta militar, um motim destruidor, ou terremoto, por pouco, muito pouco, pouco mesmo. Você não acredita, mas até há algum tempo, o Sylvester Stalonge sentia os efeitos da mancada que deu.
- Como assim? – inquiriu Oscar Neyro.
- Você sabe como é esse pessoal: eles misturam tudo. Confundindo Luis com luz, fizeram o pobre Stalonge ter problemas na Companhia Tupinambiquence de Força e Luz até o ano passado. O sujeito levou cada choque elétrico que deu medo. O fornecimento de energia das suas casas foi cortado várias vezes, durante anos seguidos. Seus aparelhos não duravam muito tempo; queimavam-se com facilidade. E olha que a “trairagem” aconteceu há mais de 30 anos.
- Impressionante – admirou-se Oscar.
- Você não acredita, mas fizeram circular um boato que os bisavôs do Sylvester, que imigraram da França em 1.870, não pagaram nem o “chapéu”, e que ele, o bisneto, deveria ser condenado por isso.
Bastante curioso, Oscar Neyro perguntou:
- Chapéu? Que história é essa?
- Você não sabe? Ora, “chapéu” era a gratificação que o armador, dono do navio, pagava ao capitão, quando este chegava a salvo no destino. O valor do prêmio era coletado entre os passageiros.
Enquanto Bafão voltava a lavar os copos e Neyro sorvia o último gole de cerveja, Debora entrou novamente no bar.
- Estou tão sozinha, neste sábado gostoso... Bafão, querido, meu xampu favorito você sabe qual é – lançou a moça revolvendo os cabelos que lhe encobriam a nuca.
Ao entregar a mercadoria para a freguesa, Bafão olhou para Oscar Neyro e murmurou:
- Vai nessa?
Texto revisado em 24/02/2011.
Atenção:
Qualquer semelhança de nomes, pessoas, ou situações terá sido mera coincidência.
Van de Oliveira Grogue caminhava atordoado, pela calçada esburacada, naquela quarta-feira, do final de agosto; ele seguia rumo ao bar do Bafão, como os demais colegas que também chegavam junto. O relógio marcava meio dia.
Usando pantufas verdes, Van pisou com o pé direito no degrau da porta do boteco. E se não fosse pelo tropeção que dera, depois do primeiro passo dentro do estabelecimento, poder-se-ia dizer ser triunfal, aquele seu ingresso.
Com um guardanapo no ombro esquerdo, Bafão sentiu que se não tivesse calma, naquele dia o ambiente tornar-se-ia bastante hostil.
Van de Oliveira, com um gesto de quem pede a pinga usual, fez Bafão deixar de assear o tampo do balcão e o servisse com a bebida.
Antes mesmo de pegar o seu copo Grogue achegou-se a uma das mesas postadas próxima a janela, onde estava Edgar D. Nal, que sorvia com calma, a sua cerveja geladíssima.
Ante a presença do colega que se aproximava, D. Nal bateu ostensivamente com o indicador da mão direita no cigarro, fazendo a cinza cair sobre o cinzeiro fixado no centro da mesa.
Grogue então se sentou dizendo:
- Mas que baita calor. Não suporto!
- Também com essas pantufas verdes. Nunca vi ninguém sair pro boteco usando isso. – respondeu Edgar.
- É que não achei meu tênis. Estava com pressa de vir pra cá. Perdia hora, por isso pus a primeira coisa que me apareceu.
Trazendo uma dose de pinga, a garrafa de cerveja e o copo limpo, Bafão aproximou-se. O guardanapo sobre o ombro direito, quase caiu quando ele se inclinou para servir o freguês.
Numa talagada Van ingeriu a pinga. E depois ao encher o outro copo com a cerveja, foi dizendo:
- Você não sabe o que me aconteceu. – ante a curiosidade do Edgar, estampada no seu próprio rosto, Grogue prosseguiu – Me disseram que a Cleide... Lembra dela?... dava pra todo mundo. Eu não acreditei, mas os dois caras, tanto o Tonhão quanto o Zezinho garantiram que ela dava, assim, numa boa, pra quem pedisse.
Edgar D. Nal engasgou com a fumaça que acabara de aspirar, mas logo ingeriu outro gole de cerveja, preparando-se para as novidades. Grogue então prosseguiu:
- Eu acreditei e resolvi falar com ela. Num dia qualquer, eu que estava dentro de casa, ouvi a voz da Cleide que vinha pela calçada e se aproximava da minha casa. Então corri, peguei uma cadeira e a pus debaixo da janela. Fiquei na espreita. Quando a gostosa passou eu a chamei. Ela parou, virou-se, voltou alguns passos e olhou diretamente para mim. Dai eu disse: Ocê não quer dar pra mim?
Edgar tossiu quase perdendo o fôlego. Bafão, que servia outras pessoas, derrubou um copo vazio sobre o balcão, e o gato preto que morgava na soleira, arrepiou-se todo.
- Bom – continuou Van Grogue – ela então respondeu: “Mas como assim? Dar o quê pra você? Ocê está louco? Cadê a sua mulher, canalha? Chama lá a sua mulher que eu quero falar com ela”. Depois que ela disse isso em voz alta, chamando a atenção da vizinha da direita, da esquerda, da frente e lá da esquina, eu quase morri de vergonha. Abaixei a cabeça, ali mesmo na janela, e entrei vexado.
- Mas você è uma besta mesmo! Onde já se viu acreditar no diz essa gente daqui. – censurou Edgar.
- Você acredita que a mulher ficou um tempão a vociferar diante da minha casa? Nossa! Eu quase faleci acanhado – confessou Van Grogue.
- Foi uma aprontada que armaram pra você. Só pode ter sido.
- É mesmo. Era uma armação de gente magoada. – concluiu Grogue depois de um longo tempo que passara a segurar o copo diante dos lábios.
Texto revisado em 24/09/2010
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