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A melancia

por Fernando Zocca, em 23.06.15

 

 

 

 

melancia.jpg

 

Ontem (22/06) precisei ir ao centro da cidade para tratar de um assunto que exigia providências inadiáveis.

Terminada a tarefa passei defronte ao local onde o pessoal da Turma do Sereno costuma se reunir e lá estava sentado, solitário, um conhecido que há muito tempo não via.

Quando me aproximei ele sacou do bolso uma fotografia mostrando-me e perguntando, logo em seguida, se eu sabia quem era.
A foto era um recorte de jornal e eu logo reconheci a pessoa retratada: era a sogra dele.

Então ele começou a falar: “Você se lembra dela? Essa é que era mulher de verdade. Trabalhou que nem uma égua velha aposentando-se em seguida após muito sofrimento.

Depois de deixar o serviço público ela passou a cuidar só da casa, mas os médicos recomendaram que ela se mexesse mais. Ficar sentada a maior parte do dia, mesmo que olhando o movimento da rua, não ajudaria na manutenção da saúde.

Seguindo os conselhos dos doutores ela passou então a frequentar bailes onde dançava por horas, durante dois ou três dias da semana.
Numa ocasião – se não me engano, num sábado – eu e minha mulher, resolvemos dormir na sua casa. Ela tinha ido ao baile e só chegou pela manhã.

Eu acordei logo que a velha entrou e testemunhei quando a sogrinha, se “desmontava”. Primeiro ela tirou a peruca, depois os óculos, os cílios, as lentes de contato, a dentadura, as unhas postiças, os aparelhinhos da surdez e, em seguida, a maquiagem.

Minha mulher já tinha preparado o café da manhã e quando a mãe sentou-se à mesa estava irreconhecível. Era uma outra pessoa, outra personagem.

Eu não me espantei quando ela segredou que depois de ter tirado a vesícula biliar, os ovários, a tireoide, e o rim direito, se preparava para uma lipoaspiração.

– É meu filho, depois dos 100 anos a gente vai tirando um pouquinho aqui, um pouquinho ali e vai vivendo, não é? – disse a sogra sorvendo o café quente de uma xícara grande.

Sem tecer considerações sobre a justeza da aposentadoria da mãe da minha mulher, que por ser funcionária, durante todo o tempo em que estivera na ativa, não tivera nenhum centavo descontado dos seus vencimentos, achei melhor abocanhar a bolacha que se me apresentava assim, na boa, sem muitas complicações”.

Imagina se eu me esqueceria de pessoa tão bondosa como a sogra deste meu conhecido. Isso seria mais absurdo do que não reconhecer, pelas cores, tato e sabor uma bela e grandiosa melancia.

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publicado às 18:51

Usos e costumes

por Fernando Zocca, em 21.09.14

 

 

 

 

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) tinha como objetivo, durante o seu segundo mandato, aquele de privatizar o INSS. 

Não soa estranho dizer isso para todos os que conhecem as diretrizes norteadoras dos tucanos: quanto menos a participação do Estado nos negócios da nação, melhor.

A concretização dessa política o eleitor nota na particularização do setor das telecomunicações, dos pedágios nas estradas, no fornecimento da energia elétrica, no abastecimento de água (que ainda não ocorreram no Estado de S. Paulo).

Na área da saúde, a disseminação dos planos de saúde, modelo de empreendimento semelhante ao utilizado nos Estados Unidos, teria a função de avocar os serviços prestados pela autarquia federal, o INSS. 

Essa concorrência toda, que vem se demonstrando problemática e ineficiente, não alivia ou desonera a instituição federal de cumprir com as suas funções constitucionais. 

Um dos motivadores de FHC ao eleger o INSS como alvo da privatização - ou pelo menos os serviços por ele prestados - seriam os desmandos, desvios, corrupção e a disfunção da entidade. 

A concentração da riqueza por parte de alguns segurados, advinda de situações legais desequilibradas, seriam um dos norteadores da tal política tucana naquele tempo.

Funcionários do INSS não contribuíam com parcelas dos seus salários para as próprias aposentadorias que se davam em lapsos de tempo menores do que os exigidos dos contribuintes comuns. 

Outro fato que pesava bastante, no prato privatizador da balança tucana, eram as perenizações dos benefícios concedidos às filhas solteiras dos funcionários falecidos.

A lei dizia que as moças solteiras, filhas de servidor autárquico, teriam o direito de receber os proventos do pai até que se formassem ou se casassem.

Esse dispositivo autorizava, no entanto, a milhares de dependentes solteiras, manterem a vida como se casadas fossem, inclusive com prole; a finalidade exclusiva desse tipo de união era a de conservar as polpudas somas mensais. 

Ou seja, a filha do funcionário falecido, além de se formar em duas ou três faculdades, viver maritalmente com seu parceiro, educar os filhos, estabelecer-se com atividade comercial própria, não deixava de receber os polpudos rendimentos, estando o segredo disso tudo, no fato de não casar-se legalmente. 

Por esses  e outros diversos motivos, o INSS a cada ano, obtém saldo negativo nas suas contas: ele paga mais do que recebe. Mais e mais trabalhadores adquirem seus direitos de receber os benefícios da entidade, e muito menos se inscrevem para pagar as contribuições mantenedoras do sistema. 

Entretanto, nos Estados Unidos, onde como já dissemos, os serviços de saúde são prestados pelas empresas particulares, o presidente Obama, pretende fazer valer os serviços do Estado, para cuidar da saúde do cidadão norte-americano. 

Enquanto um partido (PSDB) deseja desmontar o maquinário institucional aqui, o outro pretende montá-lo lá.

Se o setor empresarial aprender a usar aqui o sistema particular empregado no solo norte-americano, e seu governo utilizar, sem os defeitos existentes na autarquia federal daqui, talvez as duas nações mantenham - para o bem dos usuários - os sistemas competidores nesta área. 

Mas há quem duvide que isso possa dar certo. As culturas são diferentes, as origens, a história do povo são bem diversas; o clima e as experiências das nações, os usos e costumes, durante os séculos, não são nada semelhantes. 

O fracasso nesse setor pode significar marcantes derrocadas eleitorais.

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publicado às 02:47

A encalhada

por Fernando Zocca, em 05.04.10

         Emília era corpulenta, lerda, portadora de um grau de deficiência que a destacava da multidão, onde, de vez em quando, se imiscuía.

         Era uma espécie de morta-viva, um zumbi carente, que desde a adolescência não conseguira ninguém que se dispusesse a amá-la. Mas por ser assim, uma lesada, na opinião dos vizinhos, recebera o carinho de alguns médicos que se esmeravam em nutri-la, com os psicotrópicos considerados indispensáveis.

         Então Emília tinha a firme convicção de que todos deveriam ser adeptos das tais pílulas mantenedoras, também da sobriedade do seu pai, um bêbado arrependido.

         E nas reuniões festivas do bairro, se alguém destoasse das atitudes, que ela achava serem as ideais, aplicava logo a tal matrona, a etiqueta de “louco” no fulano.

         Poderiam considerá-la lelé, mas a grandalhona não era besta a ponto de portar-se de forma que a demitissem do seu emprego público. Afinal a mamata era boa e, a presença diária na repartição, dispensável.

         Por ter exacerbada a sugestibilidade Emília era usada pelos políticos, velhas raposas, assaltantes dos galinheiros públicos, na difusão das opiniões negativas sobre os inconformados com as rapinas.

         O pai e a mãe da Emília passavam também seus dias sob os efeitos das tais pílulas mágicas. Os prescritores garantiam que elas substituíam as substâncias negadas pela natureza.

         Por estar bem fofa, possuir a tez alva, e ter o corpo coberto pelos tecidos adiposos, seu aspecto bovino era inconfundível. Mas os excessos materiais faziam dela uma filantropa exímia.

         Emilia tinha casa própria e vivia com os pais aposentados, credores de vencimentos respeitáveis. As despesas eram muito menores do que as receitas mensais no lar. Portanto com as sobras dos salários e cestas básicas excedentes, ela exercia uma espécie de poder, corrompendo algumas consciências, dirigindo opiniões.

         Detendo esses atributos todos, Emilia era muito requisitada pelos interessados na manutenção ou obtenção dos cargos públicos. E isso era muito gratificante para ela.

         Era tão satisfatório saber ser querida pelo deputado e prefeito decadentes, que ela não se importava de nunca ter sido beijada ou deseja por alguém.

   

Farmacêutica e cartomante burladas por casal "amigo"

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publicado às 13:54

Anibal, a Gazela

por Fernando Zocca, em 25.11.09

 

Aníbal, a bichinha, era analfabeta. Ela nascera no meio do mato e não pudera aprender a ler nem escrever. Mas não foi por isso que deixou de trabalhar. Muito pelo contrário, Aníbal desenvolveu uma enorme capacidade para cortar cana tendo, na adolescência, conseguido um emprego numa fazenda oligárquica de Tupinambicas das Linhas.
            A gazela era alta, gorda, bastante grosseira e gostava de castrar porcos e cães na pancada. Suas mãos enormes, quando seguravam uma criança, faziam os pais temerem pela saúde do infante.
            Depois que se tornou adolescente Aníbal passou a gostar de charretes e quando não tinha ainda os animais que as puxasse, reforçava seus músculos puxando-as ele mesmo, pelas estradas empoeiradas da periferia da cidade.
            Quando chegou à velhice achava que podia controlar as mentes das pessoas e, em transes, imaginava comandar os moradores do bairro. Apesar de ter muitos parentes avessos ao trabalho, ele não se incomodava tanto com isso. Por não ter mais onde gastar os proventos da aposentadoria que recebia, abastecia a casa dos vadios, facilitando a eles as ações maldosas nos quarteirões.
            Com a idade que chegava seus juízos já não correspondiam à realidade e não era raro aparecer, aos encontros marcados, depois de ter eles há muito terminado.
            O analfabetismo fazia dele um bocó impotente para saber as verdades contidas nos livros dos doutores que ele sempre via nas estantes de longe. Apesar da curiosidade que o movia a folhear um ou outro impresso, detinha-o logo o desalento por nada entender.
            Teimoso feito uma mula chucra, Aníbal gostava de ver prevalecer as suas opiniões ameaçando aqueles que ousavam discordar. “Um burro” diziam dele as pessoas depois que delas se afastava o mandão.
            Quando percebia estar sua autoestima baixa, por chateações causadas pela surdez, ou cegueira senil, ele apressava-se em comprar uma paçoca ou cocada doando-as aos afilhados, amontoados no cortiço catinguento, que sustentava.
            Diziam que Aníbal era cruel. Na verdade ele fora bêbado e tivera o privilégio de ser um dos primeiros pacientes a inaugurar a clinica psiquiátrica de Tupinambicas das Linhas.
            A Clínica de Repouso BemBom de propriedade de alguns industriais tupinambiquences, ficou conhecida como a casa que mais se destacava na recuperação dos bebuns da região. Depois de ter permanecido por longos meses sob a custódia dos enfermeiros rígidos, Aníbal concordou que seria mais confortável manter-se sóbrio. Doía menos.
            Como era aposentado e não tendo o que fazer com o dinheiro que recebia, além de sustentar os vagabundos do cortiço catinguento, ele comprava, reformava e vendia charretes, empregando o seu tempo no que ele achava ser útil.
            As deficiências sensoriais faziam do infeliz, a cada dia que passava, um velho tolo que julgava poder punir aqueles a quem antipatizava, com as maldades nunca dantes imaginadas, nas plagas da cidade abandonada.
            Por dizerem ser o Jarbas testudo caquético energúmeno, uma das vítimas preferidas pelo Van Grogue, punha na sua ingenuidade, o vovô gazela, suas forças objetivando gorar o bem estar do pingueiro.
            O vovô antílope, usando o tempo que lhe sobrava,  passeava pela cidade distribuindo balinhas e pregando razões contra a permanência do ébrio Grogue nas plagas tupinambiquences.
            Aníbal o ruminante, chegava aos oitenta anos com facilidade; apesar das limitações impostas pela surdez e cegueira, tinha ainda muita lenha pra queimar. Era o que ele achava.
 
Fernando Zocca.
 
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publicado às 20:54


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