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O mundo é pequeno, Piracicaba menor ainda (parte II)

por Fernando Zocca, em 08.07.11

                

                    Mas falando ainda dos tempos em que predominavam a falta de compromisso e a relativa responsabilidade, as horas de alienação eram vividas também no balcão da lanchonete Daytona, que ficava na esquina das ruas Moraes Barros e Boa Morte.

                    O que destacava o ambiente era a decoração feita com uma réplica de carro de corrida tipo Fórmula 1, vermelho, fixado no alto, na parede dos fundos.   

                    Os mais bêbados chegavam logo depois das 8 da noite para beber muita cerveja, stanheguer e, de vez em quando, comer batatas fritas.

                    De lá, muitas vezes, só saiam após a meia noite, completamente nocauteados nos assentos traseiros dos carros, sob as vibrações do rádio em alto volume.  

                    O DJ da moda era o Big Boy, da Rádio Mundial AM 860 KHz (Rio de Janeiro), que iniciava suas apresentações com o clássico “Hello Crazy People!!!”

                    Em Piracicaba, Atinilo José comandava o programa Varandão da Casa Verde, na Rádio Difusora, onde também trabalharam meus primos Roque De Lello e Arthêmio De Lello.

                    Para quem não sabe, Roque e Arthêmio eram filhos de Olanda e João De Lello, irmã e cunhado do meu pai; ambos foram preteridos numa questão de herança.

                    Aos desavisados como eu, era então surpreendente, mas muito surpreendente mesmo, ouvir no rádio, as músicas que se referiam ao que fazíamos em alguns momentos.

                    Assim, por exemplo, quando criança, depois que eu e alguns colegas chegávamos de um passeio pelo matagal, existente no final da Rua Ipiranga, era bem esquisito escutar “O que você foi fazer no mato Maria Chiquinha?”.

                    E no ônibus, a caminho do Ginásio Jerônimo Gallo, era desconfortável sentir que aquelas músicas e notícias, emanantes do rádio portátil do motorista, postado entre o para-brisa e o painel, tinham algo a ver conosco.

                    As questões mal resolvidas de herança começaram logo depois do falecimento do meu avô José Carlos Zocca, em 1943.

                    Mas nem tudo era sofrimento. Uma das gratas recordações que trago da infância é a de quando tomei a minha primeira limonada.

                    Isso aconteceu na casa da vizinha da minha avó Amábile Pessotto Zocca. O menino Paulo Zaia era um daqueles que brincavam conosco nas ruas. E um dia, quando chegamos suados à sua casa, a mãe dele, dona Lídia Zaia, tirando da geladeira uma vasilha com água, fez uma inigualável e inesquecível limonada.

                    Dona Lídia deve hoje estar com quase cem anos.  

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publicado às 16:38

A Janela

por Fernando Zocca, em 23.09.10

 

                               Van de Oliveira Grogue caminhava atordoado, pela calçada esburacada, naquela quarta-feira, do final de agosto; ele seguia rumo ao bar do Bafão, como os demais colegas que também chegavam junto. O relógio marcava meio dia.

 

                Usando pantufas verdes, Van pisou com o pé direito no degrau da porta do boteco. E se não fosse pelo tropeção que dera, depois do primeiro passo dentro do estabelecimento, poder-se-ia dizer ser triunfal, aquele seu ingresso.

 

                Com um guardanapo no ombro esquerdo, Bafão sentiu que se não tivesse calma, naquele dia o ambiente tornar-se-ia bastante hostil.

 

                Van de Oliveira, com um gesto de quem pede a pinga usual, fez Bafão deixar de assear o tampo do balcão e o servisse com a bebida.

 

                Antes mesmo de pegar o seu copo Grogue achegou-se a uma das mesas postadas próxima a janela, onde estava Edgar D. Nal, que sorvia com calma, a sua cerveja geladíssima.

 

                Ante a presença do colega que se aproximava, D. Nal bateu ostensivamente com o indicador da mão direita no cigarro, fazendo a cinza cair sobre o cinzeiro fixado no centro da mesa.

 

                Grogue então se sentou dizendo:

 

                - Mas que baita calor. Não suporto!

 

                - Também com essas pantufas verdes. Nunca vi ninguém sair pro boteco usando isso. – respondeu Edgar.

 

                - É que não achei meu tênis. Estava com pressa de vir pra cá. Perdia hora, por isso pus a primeira coisa que me apareceu.

 

                Trazendo uma dose de pinga, a garrafa de cerveja e o copo limpo, Bafão aproximou-se. O guardanapo sobre o ombro direito, quase caiu quando ele se inclinou para servir o freguês.

 

                Numa talagada Van ingeriu a pinga. E depois ao encher o outro copo com a cerveja, foi dizendo:

 

                - Você não sabe o que me aconteceu. – ante a curiosidade do Edgar, estampada no seu próprio rosto, Grogue prosseguiu – Me disseram que a Cleide... Lembra dela?... dava pra todo mundo. Eu não acreditei, mas os dois caras, tanto o Tonhão quanto o Zezinho garantiram que ela dava, assim, numa boa, pra quem pedisse.

 

                Edgar D. Nal engasgou com a fumaça que acabara de aspirar, mas logo ingeriu outro gole de cerveja, preparando-se para as novidades. Grogue então prosseguiu:

 

                - Eu acreditei e resolvi falar com ela. Num dia qualquer, eu que estava dentro de casa, ouvi a voz da Cleide que vinha pela calçada e se aproximava da minha casa. Então corri, peguei uma cadeira e a pus debaixo da janela.  Fiquei na espreita. Quando a gostosa passou eu a chamei. Ela parou, virou-se, voltou alguns passos e olhou diretamente para mim. Dai eu disse: Ocê não quer dar pra mim?

 

                Edgar tossiu quase perdendo o fôlego. Bafão, que servia outras pessoas, derrubou um copo vazio sobre o balcão, e o gato preto que morgava na soleira, arrepiou-se todo.

 

                - Bom – continuou Van Grogue – ela então respondeu: “Mas como assim? Dar o quê pra você? Ocê está louco? Cadê a sua mulher, canalha? Chama lá a sua mulher que eu quero falar com ela”. Depois que ela disse isso em voz alta, chamando a atenção da vizinha da direita, da esquerda, da frente e lá da esquina, eu quase morri de vergonha. Abaixei a cabeça, ali mesmo na janela, e entrei vexado.

 

                - Mas você è uma besta mesmo! Onde já se viu acreditar no diz essa gente daqui. – censurou Edgar.

 

                - Você acredita que a mulher ficou um tempão a vociferar diante da minha casa? Nossa! Eu quase faleci acanhado – confessou Van Grogue.

 

                - Foi uma aprontada que armaram pra você. Só pode ter sido.

 

                - É mesmo. Era uma armação de gente magoada. – concluiu Grogue depois de um longo tempo que passara a segurar o copo diante dos lábios.

 

Texto revisado em 24/09/2010

 

           

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publicado às 23:46

O bar

por Fernando Zocca, em 19.10.09

 

- E aí pantera, tudo bem?
 
Ele entrara duma forma tão silenciosa que quando o vi estava já ao meu lado quase fungando no meu cangote. Assustada, achei que poderia ser mais um aproveitador. Não respondi. Continuei lavando meus copos. Era um moreno jambo, alto pra caramba, cara de safado, cabelos divididos à esquerda, igual ao John F. Kennedy, e tinha um bafo de cigarro dos infernos.
 
Ele pediu uma cerveja. Sentou-se à mesa do meio. Foi o primeiro cliente do inicio da noite daquela quinta-feira triste. Com um movimento rápido, feito felino, capturou com a mão direita, o jornal que dormia sobre o balcão. Ao sentar-se buscou o maço dos cigarros, no bolso esquerdo da camisa de mangas curtas.
 
Ajeitei meus cabelos encaracolados, curtos e louros. Eu achava que deveria tingi-los de cobre, já que o amarelo-palha dava um destaque muito bem feio pros meus olhos azuis. E depois tinha mais: aquela minha pele alva era terrível. Não podia tomar um minutinho só de sol que tudo ficava ardendo feito um não sei quê.
 
Eu via unicamente momentos de tristeza. Meus pais acabavam de separar-se. Ouvia eu, às escondidas, as conversas, e disfarçava, assim como quem não entendia nada. Mas pude perceber que minha mãe traíra meu pai. Ele fora motorista de caminhão e enquanto estava fora ela aproveitava, enfeitando a fronte dele com os galhos ostensivos e exuberantes.
 
Imaginava que mamãe fizera aquilo como vingança eis que ele a enchia de sopapos e pancadas, todos os dias, quando chegava da rua, torto com tanta cana.
 
O silêncio incomodava-me. Liguei o rádio. Estava quase na hora do resultado do bicho. Minha tia, lá no andar de cima, daquele sobrado antigo, junto com outro tio, seu irmão, tramava algo que eu cismava ser a captação de apostas. O telefone funcionava incessante e o radio a pilhas informava o necessário pro deslinde da banca.
 
Um outro meu tio, xarope nato, a verdadeira ovelha negra da família, deveria substituir-me, já naquela altura do campeonato. Eu estava exausta. Fizera, na máquina primeva, os sorvetes de massa que seriam vendidos, no dia seguinte, aos escolares da escola velha e chata, plantada defronte ao bar. Mas o louco, que lembrava Adolf Hitler, estava fechado no banheiro, quem sabe fumando mais um baseado enorme feito com a erva maldita.
 
Não poderia dizer, o que aquele matuto tinha em comum com a besta apocalíptica. Talvez fosse o parentesco em satã, evidenciado nas estripulias que aprontava pelas madrugadas, movido à maconha e mamãe-de-luanda, quando a cidade ainda ronronava.
 
Aquele tio, como já disse, era análogo ao demônio. Um dia, chamou-me ao banheiro, onde simulava fazer xixi, e mostrou-me aquela coisa cabeçuda, vermelha e que parecia crescer quando cheguei perto. Senti meu rosto afoguear-se. Meu coração pulava. Ele mandou-me segurar na pontinha. Virei o rosto enojada, e corri. Imagine! O que era aquilo, minha amiga?
 
Nos dias subseqüentes, quando percebia que eu estava encerrada no banheiro, batia de leve na porta, pedindo-me com voz sussurrante, que a abrisse. Se relutasse, ele colocava logo pelo vão, uma nota de cinco mangos. Aquela agonia, que me dava, não impedia de recebê-lo e fazer o que mandava sua loucura.
 
Contei a história pra minha tia-dona-da-banca e ela achou que deveria rogar uma praga bem forte nele. O arrenegado seria perseguido por onde quer que fosse. Até ao Rio de Janeiro, por caronas, o danado seria conduzido; e se fosse possível, deixado lá com os malvados que dariam um fim naquela sua vida fodida e nefasta.
 
Se o cancro fizesse cursinho, seria perseguido. As opiniões que se formariam ali junto aos professores, funcionários e alunos seriam das piores com relação a ele.
 
Se o porco entrasse na faculdade, todos menos ele saberiam, que era uma besta e que deveria ser deixado de lado, no ostracismo. Ele não teria consciência que a maioria saberia sobre seu passado tenebroso e maligno.
 
Aquele destino estava traçado: sanatório, cadeia e cemitério.
 
- Outra cerveja, meu bem!
 
O moreno, de pé, quase ao meu lado, fazendo cara de tarado e, soltando os bagos com espalhafato, olhava-me em meu devaneio. Aquela olhadela eriçou-me os pêlos do meu braço esquerdo. Será que meu destino seria pecar? Sempre soube que vida de marafona era dose.
 
Que Deus me livrasse dos maus desígnios. Afinal, apesar de estar um tanto quanto gorda, ainda assim, com algum treino, tinha absoluta certeza, poderia fazer bonito em qualquer maratona.

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publicado às 16:17


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