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Barreiras

por Fernando Zocca, em 27.06.09

 

 
 
Ah, mas naquela noite eu queria mesmo era sambar! Desejava provar aquele beijo, na memorável gandaia cíclica desopilante; no pagode deitaria e rolaria. Veria então, meu amigo, a rapaziada toda balançar, sacolejando as forçudas anatomias.
 
Por isso liguei pra Analu reperguntando se ela estava mesmo a fim de maltratar as calosidades; informei-a sobre meu preparo e disposição pra me exaurir na esbórnia. Bocejando e mostrando-se entediada, ela disse que sim, mas que não estava muito nem aí, com a minha preocupação tola sobre as luas crescentes, cheias ou novas. Atribuí, condescendente, o despautério à zonzeira que a dominava por ter dormido até àquela hora.
 
Mas, na manobra com o carro, na garagem do edifício, resvalei sem querer, no Scort branco velho que jazia mortiço e catinguento, naquele canto horripilante. Pensei no seu usuário: um farofeiro esdrúxulo que sonhava em ser síndico do prédio só pra me danar. Marmoteiro! Armava artimanhas com pirilampagem e, açodado, tentava contra a honra alheia espalhando boatos difamatórios. Eu já não entrava mais na padaria sem ouvir o murmúrio, e notar os esgares das moças preventas e corrompidas com mentiras a meu respeito.
 
O trânsito, às dez da noite, naquele sábado, estava tremeluzente. O fluxo rápido indicava que muita gente permanecia em casa, sem dar tanta bola assim pro ar fresco e aquele aroma bom da maresia.

Pensando que não se deve deturpar o bom sentido das coisas boas, encostei ao meio fio meu Pampa idoso. Analu se aboletou ávida pra contar as novidades. Foi logo dizendo que os filhos da vizinha carcamana tiveram a pachorra para ingressar no porão da casa contígua à venda, removerem uns tijolos e, dentro do estabelecimento comercial, comerem quilos e quilos de iguarias, espalhando depois, dejetos à volta. Até seus nomes escreveram nos livros comerciais do vendeiro. No dia seguinte, como não podia deixar de ser, ocorreu um terremoto na comunidade; mas a culpa meu amigo, essa botaram num tonto que morgava flácido pelas redondezas.

Analu, cheia de assunto, "virando rápido a página", contava que o sujeito asmático, morador no andar de baixo, tinha contra si a suspeita de haver matado, quando adolescente, um irmão por asfixia, naquele tempo em que viviam desocupados e desolados em busca do que fazer na vidinha inodora e insípida. A doença seria então, no seu entender, o castigo; convicta, considerava a dispnéia persecutória.

A matraca não me dava trégua. Meus miolos ressequidos já enunciavam sinais de alvoroço; foi quando então ela atirou o derradeiro petardo demolidor dizendo que: "O Célio F. O. Gozo, nosso conhecido, envolvera-se na maior maracutaia sinistra recentemente descoberta na prefeitura de Tupinambicas das Linhas".
 
O surgimento de escândalos públicos inéditos eram tão freqüentes como os capítulos novos das novelas famosas. Que a diafaneidade prodominasse para o bem geral.
 
Sem dar-me chance pra respirar foi logo afirmando que um país também se constrói com homens e sebos. E que as barreiras que eles, os chatos de galochas, invejosos, retardados e conservadores opõem contra a ascensão social de qualquer filho de Deus deveriam ser medidas, calculadas, tocadas e se fosse o caso, demovidas com estimulações prazerosas.
 
Quando encostava o coche defronte ao boteco onde sacudiríamos as caveiras, eis que, de inopino, Analu arremete com firmeza afirmando: "E pode prestar atenção! Bach é Bach, mas os Beatles são os tais".

Boquiaberto, pensei comigo: "E ela, ainda não bebeu nada".
 
 
Fernando Zocca.
 
Publicado em 13/10/2003 no www.usinadeletras.com.br
 
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